Esta é mais uma estréia de colunas no Blog. Tiago Magaldi, pirata incansável e advogado dos populares, já foi responsável por tirar muitos de nós amotinados da forca. Esta é sua coluna "Exceção à regra", a fim de discutir uma política segurança que não se resuma a pendurar on indesejados deste grande navio, mas que seja realmente eficiente na promoção dos direitos cidadãos e que seja entendida como política social.
Por Tiago Magaldi
O debate acerca da “segurança” possui grande visibilidade e enorme bibliografia. Trabalhando-o encontramos diversas abordagens, freqüentemente contrapostas. Provavelmente, isto ocorre pelo tema ser bastante contemporâneo e instigante - afinal, a sensação de insegurança diz respeito ao nosso cotidiano, nosso dia-a-dia; nunca é esquecido. Está presente em todos os meios de comunicação, nas conversas diárias.
Percebemos, entretanto, que uma abordagem meramente jurídica da questão é bastante limitada quanto à análise das causas desse problema, já que ao direito é cômodo se colocar na posição de simplesmente condenar aquilo que não está de acordo com as suas regras ou permitir que aconteça o que predispõe. Uma análise realizada sob o ponto de vista do direito penal formal pouco tem a oferecer de instrumental para a compreensão global do problema da segurança pública, pois em geral se limita a declarar se uma situação está “certa” ou “errada”, conforme estiver de acordo ou não com a norma vigente. O problema é, entretanto, muito mais complexo que uma simples fórmula jurídica, e necessita de muitas outras áreas das ciências humanas para a sua compreensão. O direito brasileiro considera crime a execução de civis pelas forças policiais, por exemplo, mas nem por isso essa situação deixa de existir nas cidades brasileiras. Daí que não basta declarar se é legal ou ilegal determinada situação, mas quais são as suas causas. É o que tentarei fazer nesta coluna, me valendo de todo material disponível sobre o tema.
• Processo de criminalização: seletividade baseada em estereótipos
Temos como fundamentos jurídico-constitucionais da preocupação do Estado com a segurança Pública, a “preservação da ordem pública” e a “incolumidade das pessoas e do patrimônio” (art. 144 CF). Mas o que significa isto na prática? Tal questão vem sendo colocada já há algum tempo por diversos estudiosos. No caso brasileiro especificamente o estudo do tema “segurança e criminalidade” vem aumentando bastante a partir da década de 70, com o surgimento de diversos novos grupos de estudo sobre o tema, em especial nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, metrópoles assoladas por altas taxas de criminalidade. Esse aumento foi evidenciado pelo professor Roberto Kant de Lima e reflete, evidentemente, a perplexidade que o fenômeno desperta na comunidade científica e na sociedade em geral.
Entretanto, já vai longe a época em que se buscava estudar a causa dos crimes em geral, ou seja, buscava-se entender o porquê de uma suposta escolha de um individuo ou grupo de indivíduos pela conduta criminosa, em contraponto à escolha pela vida dentro dos parâmetros legais. Tendo-se percebido que só existe crime porque existe uma lei que tipifique determinada conduta como tal, chega-se à conclusão que o estudo sobre o tema deve focar antes de tudo na criminalização, ou seja, na tipificação, por lei, das condutas criminosas.
No estudo do professor Kant citado acima é esclarecido que na análise da criminalidade urbana existiam, a princípio, duas posições. Uma que buscava enfatizar “a dimensão especificamente criminal das escolhas individuais e sua impunidade”, e outro, em contraponto, fazendo um “recorte para as estratégias aquisitivas ou os modos de operar o poder nas condições de pobreza urbana e desigualdade social”. Adotaremos a segunda posição. Ao invés de analisarmos o fenômeno criminal em sua especificidade individual, procuraremos absorvê-lo “na dimensão mais abrangente da violência nas enormes desigualdades sociais do Brasil”.
Essa dualidade de posicionamentos não é nova. Podemos identificar essa mudança no estudo da temática criminal no surgimento da chamada teoria da reação social. Surgida nos anos 70 nos Estados Unidos, a teoria da reação social ou labeling aproach questionou os estudos que mantinham como objeto de análise o homem criminoso, que buscavam, através do estudo do indivíduo criminoso, as causas de sua suposta escolha pelo “comportamento criminoso”. Vera Malaguti Batista, em seu artigo “Adeus às Ilusões ‘Re’”, escreve que é a partir desse momento que o estudo criminológico se despede das, segundo ela, ilusões de ressocialização, reeducação, reintegração, atribuídas ao sistema penal como sua função específica. Essas “ilusões re” prometiam o (também “re”) reendireitamento do indivíduo, readequando-o ao convívio social. Logicamente, se a crença predominante é a de que um indivíduo comete crimes porque “desviou” do caminho normal a ser seguido por todos os cidadãos, a solução para ele serão as técnicas de reendireitamento do indivíduo, para que eles possa voltar ao convívio social reto, em perfeito funcionamento. A partir do momento em que caem por terra os posicionamentos que acreditam que a origem do delito está na existência de defeitos no indivíduo caem também as crenças de reintegração.
O questionamento da teoria da reação social se fez através do estabelecimento de três conclusões: o caráter relativo do que é crime; as “cifras ocultas” da criminalidade; e a impunidade dos crimes de colarinho branco.
Quanto à primeira conclusão, compreendeu-se que “o delito (...) é nada mais do que um ponto de vista sobre o anti-social, que logrou impor-se sobre outros pontos de vista, em um dado momento e lugar”. Ou seja, o delito, em uma sociedade, abarcará aqueles comportamentos que, na posição da perspectiva que saiu vitoriosa na disputa pela hegemonia ideológica, devem ser criminalizados. A criminalidade será, então, um status social atribuído a determinadas camadas da população por quem detém o poder de seleção. Desse modo, se partimos da premissa de que vivemos em uma sociedade onde existe uma hegemonia de um discurso na sociedade, temos que os crimes – ou os comportamentos que deverão ser considerados como criminosos - serão determinados a partir dos pontos de vista daqueles que criam esse discurso.
Essas rápidas premissas já nos ajudam a recolocar a questão da violência e em especial o papel do Estado. Uma visão comprometida com o rompimento de véus ideológicos que obstaculizem o conhecimento aprofundado deve necessariamente ter em conta que o estabelecimento do programa penal - condutas que serão tratadas como criminosas - é um ato político; portanto, implica escolhas tanto qualitativas (qual conduta se deve punir) quanto quantitativas (quanto se deve punir cada crime). Logo, defender acriticamente a criminalização tal e qual prevista em lei significa defender um ponto de vista que, mesmo tendo sido feito formalmente universal, não possui conteúdo universal – traz necessariamente a marca do discurso hegemônico sobre o tema.
Seja bem-vindo, Magaldi! Belo artigo! Nunca havia pensado nesta relação entre a individualização do crime e a proposta de recuperação do criminoso. Agora seria a idéia de recuperação também incorreta sociologicamente falando? O criminoso é realmente um cara que tem problemas a serem corrigidos, sejam eles sociais ou psicológicos? Será que daria outro artigo? rsrs
ResponderExcluirAbraço
Excelente artigo, Magaldi. Salientar o caráter político da primazia de alguns crimes sobre outros, ou melhor, não-outros, é o papel de uma crítica acertada sobre a lógica do sistema penal. Contudo, devemos perceber quais os crimes, e em quais condições, que são obstáculos a luta democrática pela ampliação do Estado e entender quais são as medidas cabíveis se a liberalização, pois se trata de criminalização da pobreza, ou endurecimento por que se trata de lesa pátria. Em todo caso estes problemas são mediatos e mesmo Lenin percebia que é necessário o desenvolvimento de determinadas condições capitalistas para o desenvolvimento de medidas mais democráticas. No cerne to contigo e não abro, mas gostaria de vê-lo falar num discurso prático acerca dos problemas da violência.
ResponderExcluirExcelente artigo!! Priorizar as escolhas políticas da lei penal é um interessante ponto de partida, também gostei da defesa de uma interdisciplinalidade para entender a questão da violência, sobretudo ao dizer que o aspécto normativo do "certo" e "errado", é um ponto de vista formal e incompleto para entender a complexidade do tema. Sinal Preto!!
ResponderExcluirFala galera! Desculpem o mega atraso, mas vida de não-bolsista é dura. Allysson, só se corrige o que não funciona direito: se o mito do homem de bem trabalhador fosse real e acessível a todos acredito que reduziríamos MUITO os crimes típicos de exclusão social, como os patrimoniais de pequena monta. O problema é que a exclusão é inerente ao modo de funcionamento da nossa sociedade... enfim, é claro que não existe crime em geral pura e simplesmente por causa de exclusão social, mas em se tratando da maior parte da população carcerária ela é causa direta! Quando estagiava vi um rapaz ser condenado a NOVE anos de reclusão pelo furto de um celular e uma bolsa. E isso era quase todo dia, em apenas UMA vara criminal. Esse é o quadro!
ResponderExcluirQuanto ao meu camarada PV, estou plenamente de acordo que não devemos restringir nosso leque de opções quanto à construção de alternativas ao domínio violento sobre parte de nossa população - e nem falo "traficantes" aqui pq hoje o maior problema parece ser a milícia, organizada e com projeto de poder, diferentemente dos traficantes que são um bando mambembe, morrendo de bobeira.
ResponderExcluirSó que, como eu disse alhures (sempre quis falar isso), a resolução de problemas práticos sobre segurança pública não deve impedir uma crítica radical da situação. Na "crise" que desembocou no sensacionalismo sobre o Alemão, por exemplo, defendi a proposta de rendição como a mais adequada ao momento, mas isso não signifique que devemos pensar só imediatamente... mesmo o argumento de que uma solução prática é "emergencial" (ou seja, não cabe muita discussão), como dizem por aí, é falso, pois coloca "emergência" como uma situação objetiva, quando não é: é emergencial aquilo que a hegemonia decide que seja emergencial. Cabe a nós sabermos trabalhar conscientes dessa escolha política - a chave aqui sendo "conscientes" -, e não seguirmos cegamente aqueles que querem nos convencer que a sua emergência é mais emergencial que a nossa.
Nós já estivemos do outro lado da legalidade, e os argumentos não eram muito diferentes! Terroristas, facínoras, perigosos à ordem, etc. Isso não deve ser esquecido se quisermos fazer uma crítica coerente.
Sinal Preto!