segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Navegando na América: A História, O Herói e a Literatura: A representação literária de Simon Bolívar por Gabriel Garcia Marquez


Estreamos aqui a coluna de críticas literárias de Lucas Machado. Este corsário também oriundo do alto da Serra, ultimamente vem se aventurando em águas caribenhas e já é tido como um dos piratas mais temidos do Atlântico! Acompanhado das leituras de José Martí, Lucas acabou de adentrar as entranhas do monstro e está pronto para a batalha. Sinal Preto!





A História, O Herói e a Literatura: A representação literária de Simon Bolívar por Gabriel Garcia Marquez.


Esta é uma versão resumida de um trabalho de conclusão de curso feita por mim durante minha graduação em história pela UFRJ.




Introdução:
            Pretendemos neste trabalho apresentar uma análise acerca da representação literária de Simon Bolívar, importante líder da independência da América Espanhola em fins do século XIX, construída por Gabriel García Márquez em seu livro: “O General em seu Labirinto.
Trata-se de uma análise historiográfica de um texto literário e para fazê-la a contento, será necessária uma consideração teórica introdutória acerca dos possíveis pontos convergentes e divergentes entre a representação literária e a representação historiadora do passado, inserido no debate sobre a narratividade do conhecimento historiográfico. Seguiremos com uma consideração acerca da importância política dos heróis e mitos para a construção de um imaginário social popular acerca do passado. Trata-se, portanto, de uma abordagem que considera a figura de Bolívar na fronteira entre a história a ficção literária e a construção do herói enquanto mito. Concluiremos com uma análise dos principais eixos temáticos que perpassam a obra “O general em seu labirinto”, apresentando uma interpretação do enredo da obra e de seus principais personagens característicos para além do próprio Bolívar.

Questão Teórica: A História e a Literatura.

A relação entre representação literária e representação historiadora se torna complexa ao se abordar um romance de gênero “histórico”. A diferença básica entre historiografia e literatura está no referente do conhecimento. A história tem como referente fundamental o passado, neste sentido a historiografia busca uma função veritativa explicita. Esta “função veritativa” não existe no romance literário, o referente da literatura (ficção) é neste sentido, interno á própria obra. O romance histórico, porém, possui com sua linguagem, uma capacidade de “convencimento”, um “efeito de realidade” que faz um romance de literatura obter um efeito de convencimento acerca de personagens e acontecimentos históricos, certas vezes, superior á uma obra historiográfica. Esta capacidade de convencimento é particularmente forte na referida obra de García Marquez, em sua descrição íntima dos supostos ou reais conflitos psicológicos do “libertador”.  Para abordar as tensões deste dilema, apresentaremos a aporia do ofício do historiador segundo Carlo Ginzburg, em sua análise do romance “Guerra e paz”, de Tolstoi.
Tolstoi na referida obra, defende a convicção de que “um fenômeno histórico só pode se tornar compreensível por meio da reconstrução da atividade de todas as pessoas que dele participaram” (Ginzburg, 2007, P.265-266). O autor, em sua descrição da “Batalha de Borodin” coloca o leitor em um contato íntimo com todos os participantes da batalha, indo do relato das ações de Napoleão Bonaparte ao mais humilde soldado. Esta possibilidade de reconstruir um acontecimento histórico em seus íntimos detalhes é, porém, vetada ao historiador. O romance histórico preenche os vazios, as lacunas existentes na documentação com a narrativa ficcional. A elaboração imaginativa “preenche” de forma plena (e potencialmente ilimitada) as limitações das fontes históricas. Ginzburg recomenda ao historiador, agir em um sentido contrário, incorporar na narrativa do texto, a problematização das dificuldades e limitações presentes na pesquisa, tanto quanto as escolhas, opções e hipóteses do próprio historiador.
     Consideraremos o Bolívar de García Marquez enquanto um personagem de literatura (em sentido fictício) inserido neste dilema entre o referente histórico do romance em convívio da narrativa ficcional. García Marquez em sua reconstrução dos últimos dias da vida de Bolívar cita tanto documentos e discursos históricos, quanto constrói narrativas fictícias entre os personagens presentes no enredo da obra. Aonde falta a documentação, a elaboração imaginativa segue seu livre curso.

O Herói e o Mito.
            Segundo artigo de Vivi Fernandes de Lima na “Revista de História da Biblioteca Nacional”, a construção do imaginário social acerca de um herói é um processo ao mesmo tempo político e histórico. Um ator político pode ser glorificado como herói em vida ou pode ser valorizado após sua morte. No caso de Bolívar esta questão é patente na medida em que ele foi, em vida, e ao mesmo tempo, endeusado por seus partidários e demonizado por seus opositores. Um mito construído em uma época pode ser posteriormente desconstruído, para novamente ser “resgatado” em outro contexto. Isto depende da vontade de atores políticos que se apropriam da figura de personagens históricos, de acordo com seus próprios fins e interesses. A figura de Simon Bolívar e suas ideias, sem dúvida foram apropriadas de diferentes maneiras, tendo sido (e continua sendo até hoje) um elemento importante da disputa política nos países hispano-americanos.
            A representação literária de Simon Bolívar por García Marquez.
            No posfácio da edição brasileira (1997), García Márquez afirma que um primeiro interesse pela escrita deste livro veio do “Rio Magdalena”. O livro perpassa geograficamente esta região da Colômbia, país natal do escritor, donde o autor diz guardar calorosas lembranças de infância. As chuvas torrenciais, as paisagens exuberantes e animais exóticos são partes importantes da ambiência do livro, que neste aspecto, carrega as marcas das lembranças do autor, apesar da característica do livro (como veremos posteriormente) de não possuir uma narrativa temporal e espacial fixa.
Quanto á questão da relação ambígua da história com a literatura, o próprio García Márquez admite: “Este livro não teria sido possível sem a ajuda dos que trilharam antes de mim este território, durante século e meio, e me tornaram mais fácil a temeridade literária de contar uma vida com uma documentação tirânica, sem renunciar aos foros desaforados do romance” (García Márquez, 1997, P.268). Os “foros desaforados do romance” precisam de uma liberdade de criação literária difícil de realizar em se tratando de uma figura histórica dotada de uma documentação “tirânica”. Neste sentido o autor considera positivo o fato dos últimos quatorzes dias da vida de Bolívar não serem muito bem documentados. O autor em seu elogio ao revisor de texto, Antonio Bolívar Goyanes, comenta até que alguns possíveis contra-sensos involuntários, tais como um militar que ganhava uma batalha antes de ter nascido (historicamente falando) ou o encontro de Bolívar com o General Sucre, “quando um deles se encontrava em Caracas e o outro em Quito” (Garcia Márquez, 1997, P.270), dariam certa pitada de “humor involuntário” ao texto, ou seja, a pretensão á verdade, não era por intenção, o objetivo do livro, e sim, “contar uma história”, ou estória, no sentido de uma narrativa ficcional que não deixa de ser dotada de um sentido, de uma interpretação.
García Márquez escolhe narrar a vida de Bolívar em seus últimos dias. Em nossa consideração esta escolha não é ocasional. O crítico literário Rinaldo Gama no prefácio á edição brasileira (2008) do livro “Cem anos de Solidão”, escreve que: “García Marquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. ‘E qual seria o seu? ’, perguntaram-lhe. ‘O livro da Solidão’. Foi a resposta.” (García Marquez, 2008). De fato a temática da solidão aparece na maioria, se não em todas as suas obras: “Cem anos de Solidão”, “O Outono do patriarca”, “Ninguém Escreve ao Coronel”, “O Amor nos Tempos do Cólera”, dentre outras de suas obras mais famosas são marcadas centralmente por esta temática.
O Bolívar de “O General em seu Labirinto” é notadamente um Bolívar representado por um dilema central. De um lado, um herói incansável na liderança da luta por um ideal emancipador, a independência de toda a América Hispânica, e mais do que isso, a unidade política e até institucional destes vastos territórios. De outro, a realidade dura e instransponível, que impede a realização da consolidação de seu grande ideal, as inúmeras dificuldades, às dissenções, o espírito localista. Acima de tudo, figura como barreira maior e insuperável, a própria morte, que o acompanha de perto neste memorável livro. García Marquez escreve a vida de Bolívar em sua fase mais solitária, o período em que o libertador se vê limitado em suas ações políticas pelas suas próprias condições físicas que deterioram. A descrição de mal-estares e doenças e a curiosa repulsa do general em acolher as receitas médicas convencionais se tornam símbolo de um homem que resiste em seus ideais obstinadamente. A descrição das doenças “humaniza” o herói, o aproxima de uma criatura comum, ao mesmo tempo em que “glorifica” o seu esforço incansável por continuar a luta.
A morte, este destino inelutável não parece barreira para o general continuar a planejar e sonhar com a realização de seus altos objetivos, e também, esbravejar e se enraivecer das dificuldades postas em seu percalço, sempre afastando a América do glorioso futuro, que Bolívar em seu labirinto, ao mesmo tempo em que o reconhece como necessário, o vê enquanto distante, se não, impossível. As enérgicas e espasmódicas retomadas do ímpeto revolucionário são seguidas de melancólicos desânimos. O corpo do General parece se revitalizar apenas para depois, seguir o aprofundamento da doença e a aproximação da morte.
“O General em Seu labirinto” é, porém, não apenas “o livro da solidão” (obra maior de García Marquez), mas também um livro de reminiscências. O final da vida do personagem é tomado como ponto de referência para uma rememoração de toda a trajetória de vida do libertador. O livro comporta múltiplas temporalidades em sua narrativa, ele não se limita a seguir as etapas dos últimos dias de vida do general, ele rememora os episódios centrais de sua vida. Nestas rememorações se misturam o herói e o mito. Inúmeras afirmações de feitos memoráveis, como a de que Bolívar percorreu a cavalo duas vezes a distância de uma volta completa pelo globo terrestre (e com isso ganhou o apelido de cú de ferro), ou de que havia dezesseis homens que escreviam ao mesmo tempo as cartas ditadas pelo general (uma inusitada justificativa para a existência de suas dez mil cartas), ou os incontáveis encontros amorosos (que apenas José Palacios, seu fiel serviçal, saberia o exato número) são contados não enquanto fatos, nem enquanto mentiras, mas enquanto estórias (que nunca foram desmentidas). Este ingrediente mítico da obra pode ser considerado como parte do que usualmente chama-se de “real maravilhoso”, o “espanto” provocado pela ruptura com o real, a quebra com a expectativa de uma narrativa que se mantenha nos limites do convencional. García Márquez transcende a expectativa de normalidade através da exploração do inusitado e do mito.
“O General em seu Labirinto” constrói uma figura complexa do General, ao mesmo tempo humana, fálica e também heróica, gloriosa. A luta do General contra a morte o identifica com a sina fatal de todo o ser humano, mas esta luta não se apresenta apenas como uma resistência á morte, mas uma resistência à fragmentação política da Hispano América, que o General busca evitar e empenha todas as energias disponíveis para tanto, e apesar de um reconhecimento íntimo de que o ideário da unidade política era impedido por inúmeros fatores. Neste sentido, a frase de Bolívar escrita em uma carta ao General Santander em 1823 e citada por García Márquez na introdução do livro: “Parece que o Demônio dirige as coisas de minha vida”, dá o tom do labirinto do general nesta representação literária do ilustre “Libertador das Américas”, o “labirinto” é a própria reflexão do general acerca dos descaminhos da história da América Espanhola em se constituir enquanto território livre e independente.


5 comentários:

  1. Grande Lucas, muito bom você colocar o debate literário na ordem do dia. Gostaría e saudá-lo e envio por email minha opnião sobre esta discussão que tanto me interessa.
    Grande Abraço!!!

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  2. Ahhh eu tivesse a capacidade ou o conhecimento para poder trilhar um caminho de discussão como este, mas as sendas da vida me levaram a abstrações infrutíferas que sempre se atualizam na ordem do tempo presente. Realmente instigante o texto... gostaria de ter a oportunidade de ler o trabalho todo.

    Belo início de coluna literária.

    Parabéns Lucas e Allysson

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  3. Ahhh esqueci de dizer que com este negócio de ICA pedi pro Théo me colocar na linha de pesquisa sobre Nação e Identidade.

    Espero poder contribuir com o debate e assim ajudar a avançar nossa compreensão sobre o tema!

    Abraços

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  4. Valeu pessoal!! Obrigado pelos comentários!
    Navegar é preciso e a batalha continua!
    Em breve teremos um novo encontro.

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