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segunda-feira, 14 de março de 2011

Navegando na América: História e Hermenêutica (parte 2).



Por Lucas Machado

            O filósofo Hans Georg Gadamer parte da formulação Heideggeriana sobre o circulo hermeneutico para formular o que seria a “pré-estrutura da compreensão”. As condições prévias de possibilidade da compreensão de qualquer texto se baseiam em sua formulação em três elementos: a reabilitação do conceito de preconceito como condição prévia da compreensão; o reconhecimento da tradição enquanto momento de fusão do passado com o presente histórico; o significado hermeneutico da distancia temporal como recusa á premissa historicista da tentativa de “supressão” da distancia temporal e o reconhecimento do caráter produtivo da compreensão mediante o diálogo das perspectivas presentes do pesquisador com o passado.
Gadamer busca reconceituar os conceitos de verdade e método á partir de uma crítica que se situa numa posição intermediária, ou de diálogo entre as premissas do historicismo e do relativismo do conhecimento. Gadamer parte do princípio relativista de que o historiador não pode reconstruir o passado tal como ocorreu. Esta premissa parte da noção de que as fontes da pesquisa histórica não são um dado “transparente” que reflete objetivamente as condições do passado, mas sim um fragmento que permite uma compreensão parcial. A crítica ao preceito historicista de que o historiador pode reconstruir o passado em seus próprios termos, tal como ocorreu em seus próprios termos é crítica ao objetivismo, porém não cai no subjetivismo de considerar que a relativismo do conhecimento impede qualquer afirmação positiva sobre o que realmente ocorreu. Mediante mirar a interpretação histórica da coisa mesma, em suas condições próprias pode-se chegar á um conhecimento que tem a característica de uma verdade parcial ou transitória, por que pode ser ultrapassada mediante a realização de novas pesquisas, que através do diálogo intersubjetivo, aprofundam e qualificam o debate e o conhecimento sobre determinado tema histórico. A verdade deixa de ser considerada como algo a ser atingido mediante a aplicação de um método, que garanta a exatidão dos resultados e extinga a possibilidade de novas perguntas, para ser considerada como relativa O aprimoramento do conhecimento sobre o passado, se dá pela pesquisa e diálogo entre diferentes “miradas” á coisa mesma do passado, sem que se extingam as possibilidades de novas miradas que geram novos debates.
A reabilitação do conceito de pré-conceito se baseia na teoria heidegeriana do circulo hermeneutico, no qual a interpretação de um texto começa com uma pré-configuração de seus possíveis significados em totalidade, totalidade re-significada conforme a leitura e a compreensão do texto vão re-elaborando as visões gerais de totalidade. O conceito de pré-conceito foi duramente criticado pela tradição do iluminismo (Alfklarung), contribuindo para a formação do pensamento historicista e sua premissa de compreender a história em seus próprios termos. Gadamer critica a posição ingênua de considerar que o passado pode-ser entendido sem a influência do presente. A reabilitação do pré-conceito propõe uma consideração crítica pelo historiador de quais são as premissas de sua análise. O pré-conceito só assume uma característica pejorativa quando não passa pelo crivo da autocrítica e da reflexão acerca de quais são os elementos prévios do entendimento do passado considerados pelo historiador, ou expressando de outro modo, a necessidade de considerar criticamente a estrutura prévia da compreensão.
A desconsideração do pré-conceito leva á idéia equivocada, presente na premissa historicista, de que o passado para ser entendido enquanto tal deve ser compreendido através de uma “supressão temporal” que, suprimindo a distância entre o passado estudado e o presente do historiador, permita o “resgate” do passado enquanto tal. Para Gadamer, ao estudar o passado inserido em um contexto da tradição de um presente, o historiador não suprime o passado, nem deve buscar fase-lo, ao invés disto, ele deve considerar criticamente a tradição na qual está inserido para á partir dela, realizar um diálogo com o passado. A própria tradição é vista como um momento de “fusão de horizontes”, do passado com o presente. A tradição ela mesma ao mesmo tempo em que herda características do passado, as reelabora, de forma que a tradição se transforma. O principio hermeneutico da distância temporal está na possibilidade do diálogo entre o presente o e passado inserido na tradição, de forma a que a distância temporal passa a ser encarada como um fenômeno positivo, potencialmente criador.
Heinhart Koselleck em História e Hermenêutica busca um diálogo crítico entre a teoria da história e a hermenêutica gadameriana. O autor desenvolve a reflexão sobre as condições estruturais antropológicas da possibilidade do acontecer histórico, expresso no conceito de “Histórica”, campo de investigação acerca das condições de possibilidades do acontecer histórico, que através de uma abordagem da história dos conceitos, formulam pares de conceitos que expressam essas estruturas prévias do acontecer.  Para Koselleck, a história se valendo da teoria da compreensão hermenêutica, a ultrapassa, ao abordar por intermédio da linguagem, estruturas pré-lingüísticas e estruturas extralingüísticas. Ambas, a história e a hermenêutica utilizam a linguagem como meio para a compreensão, com a diferença que a história ultrapassa a linguagem ao considerar estes elementos “pré” e “extra” lingüísticos. Portanto se valendo do circulo hermeneutico, da consideração da estrutura prévia da compreensão e da realização do diálogo intersubjetivo, a teoria da história considera também outras questões que são particularidades não compartilhadas com outras disciplinas das ciências humanas.
O estudo da Histórica leva em consideração os elementos pré-linguisticos da compreensão histórica. Koselleck apresenta essa estrutura através da formulação de cinco pares de conceitos antitéticos. Ele parte do conceito heideggeriano de “Daisen”, que expressa a finitude do homem para dizer que a presença da morte, a consciência da finitude da vida humana é uma questão fundamental do acontecer histórico, ela dá origem ao primeiro par antitético, a contradição entre prever a morte e poder matar. A consciência da finitude da vida leva ao conhecimento da possibilidade de matar, de forma que este par antitético fundamental está na base de inúmeros conflitos presentes na história humana. Koselleck pretende transformar o Daisen heideggeriano em um Daisen histórico. Este primeiro par antitético nos leva ao segundo, o par amigo/inimigo, que remete á questão da auto-organização humana, de reconhecer o próximo como semelhante o distante como diferente e passível de ser morto. Para utilizar na análise histórica um par de conceitos como este, Koselleck propõe uma análise da sucessão dos pares, amigo/inimigo na história. O segundo par permite uma abstração que gera um terceiro par de conceitos, o interior/exterior, que remete á questão da espacialidade histórica, da existência inevitável de “unidades de ação social ou política que delimitam outras unidades de ação”. Desta oposição, deriva o par complementar, público/secreto como conceitos que demonstram a relação de organizações sociais que definem um espaço de diálogo, o público e um espaço próprio, exclusivo, o secreto. O quarto par é o da diferença entre as gerações, resultante da interação entre homem e mulher, da reprodução humana, que possibilita a consciência da existência das gerações. O quinto par está no fundamento estrutural da desigualdade de forças entre os homens, o par amo/escravo, que demonstra a “desnudada relação de poder entre os fortes frentes aos fracos”, como condição estrutural da história.
A “superação de todo proceder hermeneutico”, têm relação com elementos extralingüísticos da ciência da história. Primeiro, o historiador ao transformar textos em fontes para a elaboração de um objeto histórico, faz a ele perguntas não disponíveis na linguagem do próprio texto ou de sua época, o que significa que o historiador compreende o texto como uma fonte para compreender questões que vão além dele, ao contrário da postura do exegeta. Ao buscar compreender contextos extralingüísticos através do estudo da linguagem de um texto o historiador ultrapassa a compreensão hermenêutica. Em alguns casos, como na história econômica, as fontes textuais nem sequer se fazem presentes enquanto fontes de análise, de forma a que praticamente não se estabelece relação com a linguagem do período estudado. Koselleck pondera estas questões para formular uma teoria não hermenêutica da história, que, porém reconhecendo a linguicidade comum á história e á hermenêutica pondera que é necessária a consideração da linguagem para a compreensão da história em seus elementos que transcendem a hermenêutica. 
O horizonte da compreensão hermenêutica de Gadamer e suas implicações históricas estão presentes na reflexão dos historiadores Koselleck e Rusen. Ambos fazem o debate da relação entre objetividade e subjetividade buscando re-elaborar o caráter científico da história, consideram a importância da razão comunicativa e do debate intersubjetivo para o aprofundamento do debate historiográfico e também concordam com um conceito relativo de verdade, de forma a que o pensamento dos três autores encontra convergências, marcando diferenças nos aprofundamentos que os dois historiadores fazem acerca das condições de possibilidade da história e que de certo modo vão além da teoria hermenêutica de Gadamer. A teoria sobre a busca de orientação no tempo como condição de possibilidade da história, de Rusen pode dialogar com a reflexão de Koselleck sobre a Histórica, na medida em que se encontram de certo modo em um horizonte comum de buscar a formulação de uma teoria da história que transcenda o debate exclusivamente metodológico. Estes três importantes autores alemães sem dúvida possuem teorias que dialogam de modos de diversos acerca das do desafio da elaboração das possibilidades de uma teoria da história.  
   

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

História e Hermenêutica. Um debate para as possibilidades da teoria da História no horizonte da historiografia contemporânea. (Parte 1).




Este é um artigo elaborado durante a minha graduação em história na UFRJ. Ele está muito resumido (o original tem 14 páginas) e dividido em duas partes. Para quem gosta de discutir questões da teoria do conhecimento ele pode servir de uma apresentação básica de autores da escola histórica alemã. Quem tiver interessado na versão integral, eu mando por email. Sinal Preto!





Por Lucas Machado

O historiador Jorn Rusen em seu livro Razão Histórica propõe fundamentar os princípios de uma Teoria da História que tem como proposta discutir condições de possibilidade da ciência histórica entendida a partir de uma consideração da relação que as pessoas em geral estabelecem com a História ao buscar se situar no tempo e buscar orientação de sentido para suas vidas, ponto de partida para qualquer elaboração de conhecimento com a história como referente, inclusive as pesquisas científicas. A abordagem de Rusen acerca da Teoria da História tem influência do importante filósofo Hans Georg Gadamer, que influenciou muito os debates da historiografia alemã com suas teses sobre a “teoria da experiência hermenêutica” (Gadamer, 1999. P. 400), que será discutida quanto ás relações estabelecidas entre o princípio hermeneutico e a compreensão da história. Enfim, serão abordadas as contribuições do historiador Heinhart Koselleck para a reflexão das condições de possibilidade da História, através da “Histórica”, e suas reflexão sobre uma teoria da História que englobando a dimensão da compreensão hermenêutica, a ultrapassa quanto ao referente de seu campo de análise e construção do objeto do conhecimento. Rusen propõe entender o coditiano do historiador e a relação que as pessoas estabelecem entre a história e suas vidas como o ponto de partida que motiva os historiadores a elaborarem um conhecimento que, dando sentido ao passado, ordenam as experiências e expectativas quanto ao presente e ao futuro. A reflexão parte portanto da consciência histórica enquanto orientação no mundo. O interesse das pessoas pela história se dá por carências de orientação, carências em se situar no tempo, atribuir sentido ao passado e orientar a ação no mundo, projetando expectativas quanto ao futuro.
 A partir desses interesses ou carências, aspecto comum da consciência histórica dos indivíduos, Rusen descreve a elaboração do conhecimento histórico e seus procedimentos científicos, epistemológicos, metodológicos, a elaboração de formas narrativas de apresentação, que produzem um conhecimento que por sua vez agem ou influenciam a elaboração da consciência histórica de uma sociedade, retroalimentando os horizontes de expectativas, e gerando novas perguntas, novas carências, que por sua vez, dão impulso á elaboração de novas pesquisas. Este processo cíclico expressa uma cena em que a consciência histórica e as carências de orientação no tempo aparecem como ponto de partida e objetivo que alimenta a formação de respostas que geram novas perguntas, tem o mérito de pensar ateoria da história como uma reflexão meta-histórica e meta-teórica acerca da elaboração do conhecimento histórico em sua relação com a vida, ou seja, busca refletir sobre a questão fundamental de qual é a função social da história enquanto disciplina acadêmica, científica, especializada, qual a relação entre as motivações das pesquisas dos historiadores e, podemos dizer, o lugar social do qual o Historiador elabora o conhecimento a se alimenta de perguntas que ensejam respostas, e a capacidade deste tipo específico de conhecimento em retroalimentar a consciência histórica de uma sociedade determinada.
Este processo cíclico pode-se dizer, têm uma validade pertinente enquanto modelo para apresentar um quadro da influência da produção de conhecimento dos historiadores em sociedades aonde este tipo específico de conhecimento é efetivamente buscado enquanto conhecimento orientador de sentido no tempo, ou seja, não pode ser considerado um modelo “universal”, aplicável em qualquer país, principalmente em países aonde a produção especializada de conhecimento cria mais diálogo entre os historiadores entre si, que entre estes e a população em geral. Rusen apresenta este processo cíclico como “a interdependência dos cinco fatores pensamento histórico” (Rusen, Razão Histórica. P. 35). Parte da vida prática, os interesses que influem na formulação de idéias ou hipóteses que orientam uma perspectiva da experiência do passado, a formulação de hipóteses de pesquisa, que através da adoção de[1] procedimentos protocolares e metodológicos aceitos pela comunidade acadêmica formam as regras da pesquisa científica. A pesquisa é apresentada de forma particular através da elaboração de formas narrativas que, potencialmente, criam o diálogo com leitores cumprindo sua função de orientação existencial, quinto elemento da onde parte-se para a busca por novas orientações de sentido e novas formulações. Estes cinco fatores compõem, segundo Rusen, a “matriz disciplinar” da história, ela permite entender as atribuições elementares da ciência histórica e sua relação com a possibilidade de contribuição para a mudança da vida prática dos homens. O conceito de matriz disciplinar permite pensar a história como “dependente do contexto prático da vida dos historiadores e do público interessado em história”, e também “os interesses constitutivos do pensamento histórico como carências interpretadas de orientação no tempo” (Rusen, Idem). Estas carências não constituem as atribuições internas, próprias à ciência da história: “para o caráter científico do pensamento histórico são os métodos, como métodos da pesquisa científica”. A abordagem da matriz disciplinar permite, portanto discutir a teoria da história para alem da aplicação de métodos protocolares á empiria de forma a ordenar a pesquisa científica, ela relaciona a mudança das abordagens metodológicas com a vida social em sentido mais amplo.
A Razão Histórica de Rusen tem o sentido de uma razão comunicativa. Basear o fundamento da ciência histórica na razão significa considerar a ação dos homens no mundo enquanto eminentemente teleológica, ou seja, ela busca meios para atingir fins. Fundamentar o conhecimento histórico no agir racional significa reconhecer o caráter de atribuidor de sentido do conhecimento histórico. Esta razão tem o sentido de uma razão prática, que difere da razão cartesiana baseada em princípios universais. Ela inside sobre o reconhecimento de que o debate racional, a argumentação e o diálogo intersubjetivo com base em critérios reconhecidos consensualmente permitem um aperfeiçoamento qualitativo das pesquisas históricas, e fundamenta a busca por entender o sentido das mudanças protocolares da ciência histórica.
Além destas questões citadas, Rusen propõe abordar o significado da teoria da história para três questões: a pesquisa histórica; a historiografia; a formação histórica. Em relação á pesquisa histórica, a contribuição da teoria da história está na consideração crítica acerca das mudanças da matriz disciplinar mediante o debate, a comunicação argumentativa. A contribuição da teoria da história para a historiografia está em considerar criticamente as formas narrativas de apresentação de forma a que os resultados da pesquisa não tenham uma “perda”, em termo de racionalidade histórica em relação ao uso das formas de apresentação. A questão da formação histórica amplia o debate das formas de apresentação das pesquisas para o ensino escolar. De acordo com Rusen, a história enquanto disciplina escolar possui “teorias de aprendizado histórico” que devem ser consideradas de forma distinta da matriz disciplinar da história enquanto investigação científica. A “cientifização” da história impede o diálogo do conhecimento produzido nas pesquisas ser compreendido por estudantes escolares ou pessoas comuns, não especialistas. A teoria da história tem neste sentido o objetivo de problematizar a necessidade de didatização dos conhecimentos produzidos pela pesquisa histórica, levando em consideração a questão central de relacionar o conhecimento histórico com a vida prática de onde surgem originalmente as perguntas dos historiadores.



[1]  A reflexão de Jorn Rusen acerca das carências de orientação no tempo parece convergir emseus aspectos principais com a proposta de Heinhart Koselleck de pensar a relação do individuo com o tempo a partir dos conceitos de “Espaço de Experiências e Horizonte de Expectativas” (Koselleck, Futuro Passado. RJ, 2006).

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Navegando na América: "História e Narrativa. A história pode ser contada de diferentes maneiras?"

                              

                                  Por Lucas Machado

Os desafios lançados pelo debate em torno da questão da narrativa á discussão dos fundamentos científicos da história no contexto da historiografia contemporânea têm produzido interessantes diálogos entre historiadores que se posicionam de diferentes maneiras dentro do debate acerca da atitude de repensar os fundamentos científicos da história. Para expor um balanço historiográfico em torno da questão da narrativa será utilizado o artigo do historiador francês François Hartog, A Arte da Narrativa Histórica. Para discutir diferentes posições em torno do debate entre ciência histórica e narrativa será discutido as posições de historiadores que, para fins de exposição, serão agrupados entre os adeptos do “narrativismo” e do “realismo” historiográfico. Esquematicamente, pode-se dizer que os primeiros tendem á considerar que é impossível a apreensão de uma realidade para além do texto, descolada da relação sujeito-objeto, pela análise do historiador. Os realistas se posicionam a favor da possibilidade do estudo que se pode chamar a “realidade”, para além da dimensão textual do estudo da história. As considerações feitas nos debates são, porém, mais complexas, não se resumem em posições estanques, de forma que para alguns, aceitar a dimensão narrativa da história significa negar o seu status de ciência, enquanto para outros, aceitar o caráter narrativo de toda história (se é que toda história é “narrativa”?) não implica em negar seus fundamentos científicos.
Para François Hartog, a história é uma narrativa que têm por intenção, remeter á um passado que “realmente” existiu. Diferentemente da literatura, da obra de ficção, que não visa representar um contexto passado tal como ele realmente ocorreu tendo o seu referente como interno á própria obra. Porém ambos, história e ficção, possuem a dimensão comum da narrativa. A história busca através de seus procedimentos de pesquisa, representar uma realidade passada, porém, pode ser lida quanto á montagem, ao enredo, a escrita, como uma narrativa que objetiva fazer os conteúdos da pesquisa acessíveis, compreensíveis para o leitor. Esta posição dentro do debate entre história e narrativa, que assume a narrativa histórica enquanto dimensão de toda a historiografia escrita se relaciona com um debate com precedentes históricos que remontam à formação da história enquanto disciplina científica na Europa do final do século XIX.
Segundo Hartog, a história se fundamentou enquanto ciência em “oposição” á arte, construindo fundamentos semelhantes aos das ciências naturais, á exemplo do que também aconteceu com a sociologia. A história que tinha como objetivo “contar” os fatos do passado em uma narrativa, sem problematizar que as fontes não permitem nenhum acesso “direto” ao passado, foi criticada pelos historiadores franceses da escola dos analles, optando por uma “ciência da observação, ciência da análise, leitora de documentos” (Hartog, 1998), com procedimentos metodológicos de críticas das fontes que já não ás via como uma forma de acessar diretamente uma realidade dada. O que teria sido o repúdio de uma forma particular de narrativa foi entendido na época enquanto crítica da própria narratividade da história. 
  O historiador Lawrence Stone em 1979 publica um artigo que tem como título O Retorno da Narrativa, com uma avaliação de que a historiografia contemporânea rejeitando a busca pelo entendimento dos grandes processos de mudanças e se voltando para o acontecimento, o indivíduo e o singular, voltou a abordar a questão da narrativa. Esta perspectiva ainda assume que algumas formas de historiografia possuem uma dimensão narrativa e outras não. Como expressa também o filósofo Roland Barthes, “o apagamento (quando não desaparecimento) da narração na ciência histórica atual, que procura falar mais de estruturas do que das cronologias” (Hartog apud Barthes, 1998). Já o também filósofo Paul Ricoeur em seu livro Tempo e Narrativa propõe o termo “Eclipse da Narrativa”, para compreender o fato da questão da narrativa não ser problematizada pelos historiadores da primeira metade do século XX. Este termo deixa implícita a aceitação de que toda história escrita tem a sua característica de narratividade, portanto o “eclipse” remete á um esquecimento de algo que continuou presente, a história que busca as grandes perguntas e o entendimento de estruturas também teriam a sua narratividade. De certa forma, pode-se afirmar que o elemento da narrativa é no tempo contemporâneo reconhecido como algo que faz parte do conhecimento histórico, embora este reconhecimento se dê de diferentes maneiras em relação á posição dos historiadores quanto á esta questão. 
O historiador estadunidense Hayden White propõe com seu livro “Meta-História”, investigar o que ele chama “a imaginação histórica do século XIX”. Para White, as características fundamentais do pensamento dos historiadores e filósofos do século XIX decorrem de sua elocução poética. White elabora um modelo no qual a historiografia de autores clássicos do século XIX são investigados quanto á elaboração de enredo, modo de argumentação, modo de implicação ideológica e tropos literários. Neste sentido:
“A fim de alcançar esses alvos, considerarei o labor histórico como o que manifestamente ele é, a saber: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-os.”

Para White, importa investigar as formas narrativas estruturais de elaboração de enredo que dão um sentido prévio ao pensamento destes historiadores, sem que eles se dessem conta ou que fosse intencional faze-lo. Os sentidos atribuídos aos textos decorrem destas escolhas relacionadas á elaboração de enredo, modos de implicação ideológica das narrativas, dentre outras. O uso de diferentes formas narrativas por estes historiadores do século XIX conformava estruturas textuais que conferiam diferentes sentidos ás obras, sendo que para White, as características destas estruturas textuais importariam mais que o possível caráter de verdade das teses particulares destes historiadores. Para o autor um mesmo conjunto de acontecimentos pode ser narrado de diferentes formas incluindo diferentes elaborações de enredo de forma que sentidos diferentes sejam atribuídos ao passado, sem que se possa distinguir se de fato uma forma de argumentação seja mais “verdadeira” que outra.
Para White a história não pode ser considerada uma ciência, por que as proposições teóricas e metodológicas que buscam fundamentar o conhecimento histórico seriam tantas que não existiria um consenso mínimo entre os historiadores contemporâneos sobre o que seriam os fundamentos científicos da História. Para White os argumentos de que determinada pesquisa historiográfica consegue chegar a reconstruir uma realidade é apenas um argumento de força para sustentar uma argumentação. A pretensão de escrever sobre o passado buscando representa-lo seria relacionada á pretensão de uma representação literária realista. A história, porém, não significa para ele ficção ou literatura, embora não tenha bases sólidas para se apresentar como ciência, adquirindo muitas vezes até mesmo um caráter fictício. Apesar desta afirmação muito criticada por vários historiadores de que a história seria uma “protociência”, White possui alguns argumentos interessantes sobre o pensamento histórico do século XIX como, por exemplo, a percepção da consciência histórica européia do século XIX enquanto um saber arrogante que visava fundamentar a pretensa superioridade da sociedade moderna ocidental em relação ás outras. 
            O historiador italiano Carlo Ginzburg em seu artigo “Micro-história: duas ou três coisas que sei á respeito” faz um diálogo interessante acerca da questão da narrativa e suas implicações relacionadas á micro-história. Neste artigo, o autor descreve a tragetória que o leva a conceber junto de outros historiadores italianos, esta nova forma de historiografia:
“No início dos anos 60, comecei a estudar os processos de inquisição, procurando reconstruir, além das atitudes dos juizes, a dos homens e mulheres acusados de feitiçaria. Logo percebi que esta perspectiva de pesquisa não etnocêntrica implicava um cotejo com as pesquisas dos antropólogos (primeiro de todos, Claude Levi Strauss)” (Ginzburg, p.263).
            Esta busca por uma perspectiva não etnocêntrica o leva a estudar de forma detida, fontes acerca da vida de indivíduos desconhecidos oriundos das classes populares, indivíduos cujas fontes para possíveis reconstruções eram rejeitadas em prol de pesquisas quantitativas de história serial. Em seu livro “O queijo e os Vermes”, Ginzburg pesquisa a vida e a visão e mundo de moleiro que apareceria usualmente como “uma simples nota de rodapé numa hipotética monografia sobre a reforma protestante no Friul” (Ginzburg, P.264). Na introdução deste livro ele comenta o objetivo de restituir ás classes populares o conceito de “indivíduo” [1], rejeitando a perspectiva tradicional de que apenas personalidades “ilustres”, como grandes líderes políticos, grandes pensadores e etc merecem ser pesquisados em uma perspectiva individual. Porém de acordo Ginzburg, “O queijo e os vermes não se limita a reconstruir uma história individual: conta-a”. Ginzburg reconhece a dimensão narrativa de sua obra e admite que a reflexão acerca de “estratégias narrativas” foi importante para a perspectiva deste livro. A tentativa de reconstruir a tragetória de vida de um ator específico, considerada minuciosamente, levando em conta as dificuldades oriundas das insuficiências de informação das fontes fez Ginzburg inovar em relação á forma de narrar a história:
“Os obstáculos postos á pesquisa eram elementos constitutivos da documentação, logo deviam tornar-se parte do relato; assim como as hesitações e os silêncios do protagonista diante das perguntas dos seus perseguidores --- ou das minhas. Desse modo, as hipóteses, as dúvidas, as incertezas tornavam-se parte da narração” (Ginzburg, P.265).   
            Desta forma Ginzburg coloca não apenas especificamente este livro, mas o conjunto dos micro-historiadores italianos como tendo escolhido esta abordagem de explorar os limites da possibilidade de representação histórica de um acontecimento ou trajetória de um indivíduo, através de incluir as tensões decorrentes destas dificuldades na própria narrativa do texto. O reconhecimento do caráter narrativo de todo o conhecimento histórico está aqui implícito, de forma a que, longe de considerar a narratividade do conhecimento histórico como uma contradição da afirmação da história possuir fundamentos científicos, Ginzburg propõe considerar a narrativa como uma forma de se explorar as tensões e dificuldades de reconstrução histórica em busca de uma verdade relativa. Ginzburg reconhece a fragilidade da relação do homem com o passado por intermédio da memória, e aceitando as limitações intrínsecas ao relato, defende que o passado, apesar de tudo, não é inalcançável, e que o historiador deve explorar e tornar implícito as tensões decorrentes destas questões. Neste sentido Ginzburg é crítico das posturas pós-modernas e relativistas de Hayden White e cita especificamente F.R. Ankersmit que perceberia a ambição de conhecer o passado enquanto algo superado:
         No passado, os historiadores se ocupavam do tronco da árvore ou dos galhos; seus sucessores pós-modernos se ocupam apenas das folhas, ou seja, de fragmentos minúsculos do passado que investigam de maneira isolada, independentemente do contexto mais ou menos amplo (os galhos, o tronco) de que faziam parte” (Ginzburg, O Fio e os Rastros, P.275).
            A proposta pós-moderna consistiria em considerar a história como uma atividade artística que produz narrações incomensuráveis entre si. A história fica reduzida á uma dimensão textual. Ao criticar a postura do ceticismo pós-moderno em relação á história, Ginzburg conclui que é importante considerar que todas as etapas de uma pesquisa são construídas e não dadas, mas que, porém, o estudo da micro-história não se limita a analisar fragmentos isolados e incomensuráveis, e sim, considera o estudo dos contextos para compreender as trajetórias individuais, e cita os trabalhos dos historiadores Giovanni Levi e Simona Cerutti como exemplos de histórias em que: “é significativo que a relação entre essa dimensão microscópica e a dimensão contextual mais ampla tenha se tornado em ambos os casos (...) o princípio organizador da narração”.
            O historiador alemão Jorn Rusen em seu texto “A construção narrativista do sentido histórico” [2] propõe considerar a narrativa enquanto “prática cultural de interpretação do tempo antropologicamente universal”. A narrativa, portanto, é um elemento constitutivo do que ele propõe enquanto “matriz disciplinar” da ciência histórica. A ciência histórica se baseia segundo o autor em uma “racionalidade argumentativa”, que permite a consideração das pesquisas historiográficas enquanto produção de orientação de sentido no tempo formulada com base em regras metódicas aceitas pela comunidade científica, que garantem o caráter especificamente científico do conhecimento histórico. Mas a racionalidade argumentativa própria da ciência histórica e o aspecto da regulação metódica não excluem a existência de outras racionalidades como a da política e da estética, enquanto presente na historiografia devido á sua função prática de orientação no tempo. A narrativa, portanto, faz parte da matriz disciplinar da história e constituiu aspecto do paradigma “narrativista” inerente á ciência histórica, “narrativismo”, aqui entendido enquanto o aspecto de orientador de sentido do conhecimento histórico, expresso na forma estética ou literária da narração.
Considerando os cinco elementos da matriz disciplinar da história: interesses, perspectivas, métodos, formas e funções. A questão da narrativa está relacionada tanto ás formas de apresentação quanto à função de orientação no tempo e na vida prática conferida ao conhecimento histórico. Desta maneira Rusen reformula o paradigma narrativista não enquanto uma oposição da arte aos elementos racionais e metódicos do conhecimento histórico, mas, enquanto um elemento da função da história de orientação de sentido e produção de formas de apresentação relacionadas aos objetivos de orientações relacionadas a este conhecimento. A crítica pós-moderna á racionalidade do conhecimento histórico é reformulada da negação em atribuir sentido racional á história para a reformulação de um conceito de razão que abarque os temas do relativismo cultural entre outros, de forma á que se construa um conceito de racionalidade que considere a crítica ao caráter etnocêntrico do conceito de razão dominante no século XIX:
“As formulações paradigmáticas já não devem mais servir para identificar a plenitude da diversidade do pensamento histórico como um tipo inequívoco de racionalidade, mas sim, destacar sua pluralidade, sua divergência e ambivalência, suas múltipla e heterogêneas mediações de muitas estratégias de pensamento e formas de apresentação”. (Ruzen, Razão Histórica, P.169).
            A questão da narrativa entra aqui não enquanto uma negação da racionalidade da história, mas como um reconhecimento da diversidade de formas de apresentação que geram racionalidades distintas, já que não se trata mais de considerar apenas uma racionalidade inequívoca.
            Os desafios lançados pelo debate em torno da narratividade da história tem possibilitado conclusões interessantes que criam novas abordagens para o fazer historiográfico. Considero como particularmente produtivas as abordagens que buscam não polarizar arte de um lado e ciência do outro enquanto dimensões excludentes, de forma a enfrentar o debate difícil dos limites da representação do passado pela história, tornando esta dificuldade, um tema produtivo de debates sem cair no extremo de afirmar um relativismo absoluto ou um pessimismo improdutivo quanto ás possibilidades de reconstrução do passado.


[1] Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. Ed. Companhia de Bolso. SP, 2006.
[2] In: Jorn Rusen, Razão Histórica.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Navegando na América: A Herança de Bolívar


 
             
Este texto é um trecho da minha monografia de fim de curso em história pela UFRJ.
O trecho trata do diálogo do líder da independência de Cuba no final do século XIX, José Martí com o pensamento americanista de Simon Bolívar. Para quem tiver maior interesse em Martí, envio aqui um link de um artigo meu, publicado na Associação Nacional de História.

Por Lucas Machado

“Bolívar” (Martí, 1984, P.126-132).
                   “Somos los hijos de su espada”.  
           
Neste discurso proferido em 28 de outubro de 1893 para a Sociedade Literária Hispano-Americana, Martí faz um elogio do general libertador e discute as características do pensamento político de Simon Bolívar, principalmente quanto a seu americanismo e a proposta de unidade política e institucional dos territórios da América Espanhola. Atravéz da análise deste documento pode-se caracterizar as diferenças do americanismo martiano em comparação ás idéias bolivarianistas, quanto ao sentido do universalismo do conceito de Nuestra América.
A proximidade de linguagem deste discurso sobre Bolívar com o texto clássico Nuestra América, permite uma consideração mais apurada da visão martiana do papel do herói na condução da luta política. Primeiro Bolívar é descrito como o “homem verdadeiro” que sai das “entranhas da terra”. Com esta metáfora, próxima do “homem natural” do Nuestra América, Martí demarca a proximidade do líder com as aspirações legítimas de emancipação dos povos da América segundo a “alma da terra”, ele incorpora em seu pensamento e prática, a “natureza americana”, ou seja, as aspirações de um povo novo ou uma “civilização original”. “Seu ardor foi o de nossa redenção, sua linguagem foi as de nossa natureza”. O uso do pronome “nosso”, caracteriza de forma marcante os textos e discursos de Martí de maneira cada vez mais presente desde o final da década de 80 do século XIX. “Nossa” Pátria, “Nossa” América, “Nossa” natureza, são termos constantes que expressam uma intenção de elaborar e até demarcar as especificidades e originalidades das características históricas e culturais dos povos da América Hispânica.      
            As comparações metafóricas de Bolívar com a natureza americana são feitas atravéz de verdadeiras metáforas “vulcânicas”, “de Bolívar se puede hablar con una montaña por tribuna o entre relâmpagos y rayos” (Martí, 1984, P.126), não se poderia falar “com calma” de alguém que “nunca a conheceu”. A estética da linguagem literária em suas alusões á natureza americana “realiza” a concepção de que o conhecimento da América deve ser fundado em função de suas próprias especificidades, “Vivió como entre llamas e lo era”. Bolívar neste caso, figura como o exemplo de que Nuestra América surge “sino de si mesma” “ni de Rousseau ni de Washington” (Martí, 1984 P.128). Esta passagem é significativa da busca de Martí por elaborar um discurso que “funda” as especificidades da América Hispânica enquanto uma “civilização original” de origem e composição social violenta e turbulenta, mas nem por isso, menos grandiosa. Bolívar figura como um herói destes tempos de “lava” em que irrompem as guerras e o processo da independência. “Desata” raças, vence aos homens e a natureza e corre com a “bandeira da redenção” mais mundo do que os conquistadores com a tirania.
A crônica descreve uma batalha, e como é de se esperar, Bolívar tem sua face destacada frente á multidão que peleja. Junto a ele, se encontra Sucre, Ribas e Paez. Os lideres incorporam na representação literária, a aspiração das “massas”. Porém, a tensão anteriormente referida do líder militar e sua vontade de se sobrepor aos demais no comando dos desígnios da República aparecem como tema, também, na representação literária de Simon Bolívar. Martí ao mesmo tempo em que reconhece o papel grandioso e heróico de Bolívar como fundador de um americanismo universalista, critica os métodos e o próprio objetivo político de unir institucionalmente os povos da América Hispânica:
“Acaso, em su sueño de gloria, para la América y para sí, no vio que la unidad de espíritu, indispensable a la salvacíon y dicha de nuestros pueblos americanos, padecía, más que ayudaba, com su unión em formas teóricas y artificiales que no se acomodaban sobre el seguro de la realidad: acaso el genio previsor que proclamo que la salvación de Nuestra América está em la acción una y compactade sus repúblicas, en cuanto a sus relaciones con el mundo y al sentido y conjunto de su porvenir no pudo (...) conocer la fuerza moderadora del alma popular”. (Martí, 1984, P.131).
            Em função de um contexto político em que as diversas Repúblicas hispano-americanas estavam se consolidando, não faria sentido entender o americanismo enquanto uma proposta de unidade política, ao invés disso, Martí ressalta a necessidade de “unidade de espírito” das repúblicas hispano-americanas frente ás negociações com os demais países do mundo e também quanto ao planejamento de seu porvir, atuando enquanto nações irmãs, abraçadas por uma mesma “mãe-pátria” americana. A revolução nascida com “múltiplas cabeças” não poderia ser governada abaixo de um “governo central”. A ambição de Bolívar de uma unidade política continental revelaria a tensão entre o militar e o político libertador.
Além disso, as revoluções de independência do inicio do século XIX são identificadas por Martí enquanto revoluções “criollas”, que não souberam “conhecer a
força moderadora da alma popular”. Desta forma o discurso se movimenta em duplo sentido, exalta o heroísmo da independência, mas identifica algumas de suas possíveis limitações, principalmente a de não ter conseguido incorporar nas repúblicas, diversos grupos sociais que foram excluídos da cidadania e que conformam esta “alma popular”. 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Navegando na América: A História, O Herói e a Literatura: A representação literária de Simon Bolívar por Gabriel Garcia Marquez


Estreamos aqui a coluna de críticas literárias de Lucas Machado. Este corsário também oriundo do alto da Serra, ultimamente vem se aventurando em águas caribenhas e já é tido como um dos piratas mais temidos do Atlântico! Acompanhado das leituras de José Martí, Lucas acabou de adentrar as entranhas do monstro e está pronto para a batalha. Sinal Preto!





A História, O Herói e a Literatura: A representação literária de Simon Bolívar por Gabriel Garcia Marquez.


Esta é uma versão resumida de um trabalho de conclusão de curso feita por mim durante minha graduação em história pela UFRJ.




Introdução:
            Pretendemos neste trabalho apresentar uma análise acerca da representação literária de Simon Bolívar, importante líder da independência da América Espanhola em fins do século XIX, construída por Gabriel García Márquez em seu livro: “O General em seu Labirinto.
Trata-se de uma análise historiográfica de um texto literário e para fazê-la a contento, será necessária uma consideração teórica introdutória acerca dos possíveis pontos convergentes e divergentes entre a representação literária e a representação historiadora do passado, inserido no debate sobre a narratividade do conhecimento historiográfico. Seguiremos com uma consideração acerca da importância política dos heróis e mitos para a construção de um imaginário social popular acerca do passado. Trata-se, portanto, de uma abordagem que considera a figura de Bolívar na fronteira entre a história a ficção literária e a construção do herói enquanto mito. Concluiremos com uma análise dos principais eixos temáticos que perpassam a obra “O general em seu labirinto”, apresentando uma interpretação do enredo da obra e de seus principais personagens característicos para além do próprio Bolívar.

Questão Teórica: A História e a Literatura.

A relação entre representação literária e representação historiadora se torna complexa ao se abordar um romance de gênero “histórico”. A diferença básica entre historiografia e literatura está no referente do conhecimento. A história tem como referente fundamental o passado, neste sentido a historiografia busca uma função veritativa explicita. Esta “função veritativa” não existe no romance literário, o referente da literatura (ficção) é neste sentido, interno á própria obra. O romance histórico, porém, possui com sua linguagem, uma capacidade de “convencimento”, um “efeito de realidade” que faz um romance de literatura obter um efeito de convencimento acerca de personagens e acontecimentos históricos, certas vezes, superior á uma obra historiográfica. Esta capacidade de convencimento é particularmente forte na referida obra de García Marquez, em sua descrição íntima dos supostos ou reais conflitos psicológicos do “libertador”.  Para abordar as tensões deste dilema, apresentaremos a aporia do ofício do historiador segundo Carlo Ginzburg, em sua análise do romance “Guerra e paz”, de Tolstoi.
Tolstoi na referida obra, defende a convicção de que “um fenômeno histórico só pode se tornar compreensível por meio da reconstrução da atividade de todas as pessoas que dele participaram” (Ginzburg, 2007, P.265-266). O autor, em sua descrição da “Batalha de Borodin” coloca o leitor em um contato íntimo com todos os participantes da batalha, indo do relato das ações de Napoleão Bonaparte ao mais humilde soldado. Esta possibilidade de reconstruir um acontecimento histórico em seus íntimos detalhes é, porém, vetada ao historiador. O romance histórico preenche os vazios, as lacunas existentes na documentação com a narrativa ficcional. A elaboração imaginativa “preenche” de forma plena (e potencialmente ilimitada) as limitações das fontes históricas. Ginzburg recomenda ao historiador, agir em um sentido contrário, incorporar na narrativa do texto, a problematização das dificuldades e limitações presentes na pesquisa, tanto quanto as escolhas, opções e hipóteses do próprio historiador.
     Consideraremos o Bolívar de García Marquez enquanto um personagem de literatura (em sentido fictício) inserido neste dilema entre o referente histórico do romance em convívio da narrativa ficcional. García Marquez em sua reconstrução dos últimos dias da vida de Bolívar cita tanto documentos e discursos históricos, quanto constrói narrativas fictícias entre os personagens presentes no enredo da obra. Aonde falta a documentação, a elaboração imaginativa segue seu livre curso.

O Herói e o Mito.
            Segundo artigo de Vivi Fernandes de Lima na “Revista de História da Biblioteca Nacional”, a construção do imaginário social acerca de um herói é um processo ao mesmo tempo político e histórico. Um ator político pode ser glorificado como herói em vida ou pode ser valorizado após sua morte. No caso de Bolívar esta questão é patente na medida em que ele foi, em vida, e ao mesmo tempo, endeusado por seus partidários e demonizado por seus opositores. Um mito construído em uma época pode ser posteriormente desconstruído, para novamente ser “resgatado” em outro contexto. Isto depende da vontade de atores políticos que se apropriam da figura de personagens históricos, de acordo com seus próprios fins e interesses. A figura de Simon Bolívar e suas ideias, sem dúvida foram apropriadas de diferentes maneiras, tendo sido (e continua sendo até hoje) um elemento importante da disputa política nos países hispano-americanos.
            A representação literária de Simon Bolívar por García Marquez.
            No posfácio da edição brasileira (1997), García Márquez afirma que um primeiro interesse pela escrita deste livro veio do “Rio Magdalena”. O livro perpassa geograficamente esta região da Colômbia, país natal do escritor, donde o autor diz guardar calorosas lembranças de infância. As chuvas torrenciais, as paisagens exuberantes e animais exóticos são partes importantes da ambiência do livro, que neste aspecto, carrega as marcas das lembranças do autor, apesar da característica do livro (como veremos posteriormente) de não possuir uma narrativa temporal e espacial fixa.
Quanto á questão da relação ambígua da história com a literatura, o próprio García Márquez admite: “Este livro não teria sido possível sem a ajuda dos que trilharam antes de mim este território, durante século e meio, e me tornaram mais fácil a temeridade literária de contar uma vida com uma documentação tirânica, sem renunciar aos foros desaforados do romance” (García Márquez, 1997, P.268). Os “foros desaforados do romance” precisam de uma liberdade de criação literária difícil de realizar em se tratando de uma figura histórica dotada de uma documentação “tirânica”. Neste sentido o autor considera positivo o fato dos últimos quatorzes dias da vida de Bolívar não serem muito bem documentados. O autor em seu elogio ao revisor de texto, Antonio Bolívar Goyanes, comenta até que alguns possíveis contra-sensos involuntários, tais como um militar que ganhava uma batalha antes de ter nascido (historicamente falando) ou o encontro de Bolívar com o General Sucre, “quando um deles se encontrava em Caracas e o outro em Quito” (Garcia Márquez, 1997, P.270), dariam certa pitada de “humor involuntário” ao texto, ou seja, a pretensão á verdade, não era por intenção, o objetivo do livro, e sim, “contar uma história”, ou estória, no sentido de uma narrativa ficcional que não deixa de ser dotada de um sentido, de uma interpretação.
García Márquez escolhe narrar a vida de Bolívar em seus últimos dias. Em nossa consideração esta escolha não é ocasional. O crítico literário Rinaldo Gama no prefácio á edição brasileira (2008) do livro “Cem anos de Solidão”, escreve que: “García Marquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. ‘E qual seria o seu? ’, perguntaram-lhe. ‘O livro da Solidão’. Foi a resposta.” (García Marquez, 2008). De fato a temática da solidão aparece na maioria, se não em todas as suas obras: “Cem anos de Solidão”, “O Outono do patriarca”, “Ninguém Escreve ao Coronel”, “O Amor nos Tempos do Cólera”, dentre outras de suas obras mais famosas são marcadas centralmente por esta temática.
O Bolívar de “O General em seu Labirinto” é notadamente um Bolívar representado por um dilema central. De um lado, um herói incansável na liderança da luta por um ideal emancipador, a independência de toda a América Hispânica, e mais do que isso, a unidade política e até institucional destes vastos territórios. De outro, a realidade dura e instransponível, que impede a realização da consolidação de seu grande ideal, as inúmeras dificuldades, às dissenções, o espírito localista. Acima de tudo, figura como barreira maior e insuperável, a própria morte, que o acompanha de perto neste memorável livro. García Marquez escreve a vida de Bolívar em sua fase mais solitária, o período em que o libertador se vê limitado em suas ações políticas pelas suas próprias condições físicas que deterioram. A descrição de mal-estares e doenças e a curiosa repulsa do general em acolher as receitas médicas convencionais se tornam símbolo de um homem que resiste em seus ideais obstinadamente. A descrição das doenças “humaniza” o herói, o aproxima de uma criatura comum, ao mesmo tempo em que “glorifica” o seu esforço incansável por continuar a luta.
A morte, este destino inelutável não parece barreira para o general continuar a planejar e sonhar com a realização de seus altos objetivos, e também, esbravejar e se enraivecer das dificuldades postas em seu percalço, sempre afastando a América do glorioso futuro, que Bolívar em seu labirinto, ao mesmo tempo em que o reconhece como necessário, o vê enquanto distante, se não, impossível. As enérgicas e espasmódicas retomadas do ímpeto revolucionário são seguidas de melancólicos desânimos. O corpo do General parece se revitalizar apenas para depois, seguir o aprofundamento da doença e a aproximação da morte.
“O General em Seu labirinto” é, porém, não apenas “o livro da solidão” (obra maior de García Marquez), mas também um livro de reminiscências. O final da vida do personagem é tomado como ponto de referência para uma rememoração de toda a trajetória de vida do libertador. O livro comporta múltiplas temporalidades em sua narrativa, ele não se limita a seguir as etapas dos últimos dias de vida do general, ele rememora os episódios centrais de sua vida. Nestas rememorações se misturam o herói e o mito. Inúmeras afirmações de feitos memoráveis, como a de que Bolívar percorreu a cavalo duas vezes a distância de uma volta completa pelo globo terrestre (e com isso ganhou o apelido de cú de ferro), ou de que havia dezesseis homens que escreviam ao mesmo tempo as cartas ditadas pelo general (uma inusitada justificativa para a existência de suas dez mil cartas), ou os incontáveis encontros amorosos (que apenas José Palacios, seu fiel serviçal, saberia o exato número) são contados não enquanto fatos, nem enquanto mentiras, mas enquanto estórias (que nunca foram desmentidas). Este ingrediente mítico da obra pode ser considerado como parte do que usualmente chama-se de “real maravilhoso”, o “espanto” provocado pela ruptura com o real, a quebra com a expectativa de uma narrativa que se mantenha nos limites do convencional. García Márquez transcende a expectativa de normalidade através da exploração do inusitado e do mito.
“O General em seu Labirinto” constrói uma figura complexa do General, ao mesmo tempo humana, fálica e também heróica, gloriosa. A luta do General contra a morte o identifica com a sina fatal de todo o ser humano, mas esta luta não se apresenta apenas como uma resistência á morte, mas uma resistência à fragmentação política da Hispano América, que o General busca evitar e empenha todas as energias disponíveis para tanto, e apesar de um reconhecimento íntimo de que o ideário da unidade política era impedido por inúmeros fatores. Neste sentido, a frase de Bolívar escrita em uma carta ao General Santander em 1823 e citada por García Márquez na introdução do livro: “Parece que o Demônio dirige as coisas de minha vida”, dá o tom do labirinto do general nesta representação literária do ilustre “Libertador das Américas”, o “labirinto” é a própria reflexão do general acerca dos descaminhos da história da América Espanhola em se constituir enquanto território livre e independente.