Por Lucas Machado
Os desafios lançados pelo debate em torno da questão da narrativa á discussão dos fundamentos científicos da história no contexto da historiografia contemporânea têm produzido interessantes diálogos entre historiadores que se posicionam de diferentes maneiras dentro do debate acerca da atitude de repensar os fundamentos científicos da história. Para expor um balanço historiográfico em torno da questão da narrativa será utilizado o artigo do historiador francês François Hartog, A Arte da Narrativa Histórica. Para discutir diferentes posições em torno do debate entre ciência histórica e narrativa será discutido as posições de historiadores que, para fins de exposição, serão agrupados entre os adeptos do “narrativismo” e do “realismo” historiográfico. Esquematicamente, pode-se dizer que os primeiros tendem á considerar que é impossível a apreensão de uma realidade para além do texto, descolada da relação sujeito-objeto, pela análise do historiador. Os realistas se posicionam a favor da possibilidade do estudo que se pode chamar a “realidade”, para além da dimensão textual do estudo da história. As considerações feitas nos debates são, porém, mais complexas, não se resumem em posições estanques, de forma que para alguns, aceitar a dimensão narrativa da história significa negar o seu status de ciência, enquanto para outros, aceitar o caráter narrativo de toda história (se é que toda história é “narrativa”?) não implica em negar seus fundamentos científicos.
Para François Hartog, a história é uma narrativa que têm por intenção, remeter á um passado que “realmente” existiu. Diferentemente da literatura, da obra de ficção, que não visa representar um contexto passado tal como ele realmente ocorreu tendo o seu referente como interno á própria obra. Porém ambos, história e ficção, possuem a dimensão comum da narrativa. A história busca através de seus procedimentos de pesquisa, representar uma realidade passada, porém, pode ser lida quanto á montagem, ao enredo, a escrita, como uma narrativa que objetiva fazer os conteúdos da pesquisa acessíveis, compreensíveis para o leitor. Esta posição dentro do debate entre história e narrativa, que assume a narrativa histórica enquanto dimensão de toda a historiografia escrita se relaciona com um debate com precedentes históricos que remontam à formação da história enquanto disciplina científica na Europa do final do século XIX.Segundo Hartog, a história se fundamentou enquanto ciência em “oposição” á arte, construindo fundamentos semelhantes aos das ciências naturais, á exemplo do que também aconteceu com a sociologia. A história que tinha como objetivo “contar” os fatos do passado em uma narrativa, sem problematizar que as fontes não permitem nenhum acesso “direto” ao passado, foi criticada pelos historiadores franceses da escola dos analles, optando por uma “ciência da observação, ciência da análise, leitora de documentos” (Hartog, 1998), com procedimentos metodológicos de críticas das fontes que já não ás via como uma forma de acessar diretamente uma realidade dada. O que teria sido o repúdio de uma forma particular de narrativa foi entendido na época enquanto crítica da própria narratividade da história.
O historiador Lawrence Stone em 1979 publica um artigo que tem como título O Retorno da Narrativa, com uma avaliação de que a historiografia contemporânea rejeitando a busca pelo entendimento dos grandes processos de mudanças e se voltando para o acontecimento, o indivíduo e o singular, voltou a abordar a questão da narrativa. Esta perspectiva ainda assume que algumas formas de historiografia possuem uma dimensão narrativa e outras não. Como expressa também o filósofo Roland Barthes, “o apagamento (quando não desaparecimento) da narração na ciência histórica atual, que procura falar mais de estruturas do que das cronologias” (Hartog apud Barthes, 1998). Já o também filósofo Paul Ricoeur em seu livro Tempo e Narrativa propõe o termo “Eclipse da Narrativa”, para compreender o fato da questão da narrativa não ser problematizada pelos historiadores da primeira metade do século XX. Este termo deixa implícita a aceitação de que toda história escrita tem a sua característica de narratividade, portanto o “eclipse” remete á um esquecimento de algo que continuou presente, a história que busca as grandes perguntas e o entendimento de estruturas também teriam a sua narratividade. De certa forma, pode-se afirmar que o elemento da narrativa é no tempo contemporâneo reconhecido como algo que faz parte do conhecimento histórico, embora este reconhecimento se dê de diferentes maneiras em relação á posição dos historiadores quanto á esta questão.
O historiador estadunidense Hayden White propõe com seu livro “Meta-História”, investigar o que ele chama “a imaginação histórica do século XIX”. Para White, as características fundamentais do pensamento dos historiadores e filósofos do século XIX decorrem de sua elocução poética. White elabora um modelo no qual a historiografia de autores clássicos do século XIX são investigados quanto á elaboração de enredo, modo de argumentação, modo de implicação ideológica e tropos literários. Neste sentido:
“A fim de alcançar esses alvos, considerarei o labor histórico como o que manifestamente ele é, a saber: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-os.”
Para White, importa investigar as formas narrativas estruturais de elaboração de enredo que dão um sentido prévio ao pensamento destes historiadores, sem que eles se dessem conta ou que fosse intencional faze-lo. Os sentidos atribuídos aos textos decorrem destas escolhas relacionadas á elaboração de enredo, modos de implicação ideológica das narrativas, dentre outras. O uso de diferentes formas narrativas por estes historiadores do século XIX conformava estruturas textuais que conferiam diferentes sentidos ás obras, sendo que para White, as características destas estruturas textuais importariam mais que o possível caráter de verdade das teses particulares destes historiadores. Para o autor um mesmo conjunto de acontecimentos pode ser narrado de diferentes formas incluindo diferentes elaborações de enredo de forma que sentidos diferentes sejam atribuídos ao passado, sem que se possa distinguir se de fato uma forma de argumentação seja mais “verdadeira” que outra.
Para White a história não pode ser considerada uma ciência, por que as proposições teóricas e metodológicas que buscam fundamentar o conhecimento histórico seriam tantas que não existiria um consenso mínimo entre os historiadores contemporâneos sobre o que seriam os fundamentos científicos da História. Para White os argumentos de que determinada pesquisa historiográfica consegue chegar a reconstruir uma realidade é apenas um argumento de força para sustentar uma argumentação. A pretensão de escrever sobre o passado buscando representa-lo seria relacionada á pretensão de uma representação literária realista. A história, porém, não significa para ele ficção ou literatura, embora não tenha bases sólidas para se apresentar como ciência, adquirindo muitas vezes até mesmo um caráter fictício. Apesar desta afirmação muito criticada por vários historiadores de que a história seria uma “protociência”, White possui alguns argumentos interessantes sobre o pensamento histórico do século XIX como, por exemplo, a percepção da consciência histórica européia do século XIX enquanto um saber arrogante que visava fundamentar a pretensa superioridade da sociedade moderna ocidental em relação ás outras.
O historiador italiano Carlo Ginzburg em seu artigo “Micro-história: duas ou três coisas que sei á respeito” faz um diálogo interessante acerca da questão da narrativa e suas implicações relacionadas á micro-história. Neste artigo, o autor descreve a tragetória que o leva a conceber junto de outros historiadores italianos, esta nova forma de historiografia:
“No início dos anos 60, comecei a estudar os processos de inquisição, procurando reconstruir, além das atitudes dos juizes, a dos homens e mulheres acusados de feitiçaria. Logo percebi que esta perspectiva de pesquisa não etnocêntrica implicava um cotejo com as pesquisas dos antropólogos (primeiro de todos, Claude Levi Strauss)” (Ginzburg, p.263).
Esta busca por uma perspectiva não etnocêntrica o leva a estudar de forma detida, fontes acerca da vida de indivíduos desconhecidos oriundos das classes populares, indivíduos cujas fontes para possíveis reconstruções eram rejeitadas em prol de pesquisas quantitativas de história serial. Em seu livro “O queijo e os Vermes”, Ginzburg pesquisa a vida e a visão e mundo de moleiro que apareceria usualmente como “uma simples nota de rodapé numa hipotética monografia sobre a reforma protestante no Friul” (Ginzburg, P.264). Na introdução deste livro ele comenta o objetivo de restituir ás classes populares o conceito de “indivíduo” [1], rejeitando a perspectiva tradicional de que apenas personalidades “ilustres”, como grandes líderes políticos, grandes pensadores e etc merecem ser pesquisados em uma perspectiva individual. Porém de acordo Ginzburg, “O queijo e os vermes não se limita a reconstruir uma história individual: conta-a”. Ginzburg reconhece a dimensão narrativa de sua obra e admite que a reflexão acerca de “estratégias narrativas” foi importante para a perspectiva deste livro. A tentativa de reconstruir a tragetória de vida de um ator específico, considerada minuciosamente, levando em conta as dificuldades oriundas das insuficiências de informação das fontes fez Ginzburg inovar em relação á forma de narrar a história:
“Os obstáculos postos á pesquisa eram elementos constitutivos da documentação, logo deviam tornar-se parte do relato; assim como as hesitações e os silêncios do protagonista diante das perguntas dos seus perseguidores --- ou das minhas. Desse modo, as hipóteses, as dúvidas, as incertezas tornavam-se parte da narração” (Ginzburg, P.265).
Desta forma Ginzburg coloca não apenas especificamente este livro, mas o conjunto dos micro-historiadores italianos como tendo escolhido esta abordagem de explorar os limites da possibilidade de representação histórica de um acontecimento ou trajetória de um indivíduo, através de incluir as tensões decorrentes destas dificuldades na própria narrativa do texto. O reconhecimento do caráter narrativo de todo o conhecimento histórico está aqui implícito, de forma a que, longe de considerar a narratividade do conhecimento histórico como uma contradição da afirmação da história possuir fundamentos científicos, Ginzburg propõe considerar a narrativa como uma forma de se explorar as tensões e dificuldades de reconstrução histórica em busca de uma verdade relativa. Ginzburg reconhece a fragilidade da relação do homem com o passado por intermédio da memória, e aceitando as limitações intrínsecas ao relato, defende que o passado, apesar de tudo, não é inalcançável, e que o historiador deve explorar e tornar implícito as tensões decorrentes destas questões. Neste sentido Ginzburg é crítico das posturas pós-modernas e relativistas de Hayden White e cita especificamente F.R. Ankersmit que perceberia a ambição de conhecer o passado enquanto algo superado:
“No passado, os historiadores se ocupavam do tronco da árvore ou dos galhos; seus sucessores pós-modernos se ocupam apenas das folhas, ou seja, de fragmentos minúsculos do passado que investigam de maneira isolada, independentemente do contexto mais ou menos amplo (os galhos, o tronco) de que faziam parte” (Ginzburg, O Fio e os Rastros, P.275).
A proposta pós-moderna consistiria em considerar a história como uma atividade artística que produz narrações incomensuráveis entre si. A história fica reduzida á uma dimensão textual. Ao criticar a postura do ceticismo pós-moderno em relação á história, Ginzburg conclui que é importante considerar que todas as etapas de uma pesquisa são construídas e não dadas, mas que, porém, o estudo da micro-história não se limita a analisar fragmentos isolados e incomensuráveis, e sim, considera o estudo dos contextos para compreender as trajetórias individuais, e cita os trabalhos dos historiadores Giovanni Levi e Simona Cerutti como exemplos de histórias em que: “é significativo que a relação entre essa dimensão microscópica e a dimensão contextual mais ampla tenha se tornado em ambos os casos (...) o princípio organizador da narração”.
O historiador alemão Jorn Rusen em seu texto “A construção narrativista do sentido histórico” [2] propõe considerar a narrativa enquanto “prática cultural de interpretação do tempo antropologicamente universal”. A narrativa, portanto, é um elemento constitutivo do que ele propõe enquanto “matriz disciplinar” da ciência histórica. A ciência histórica se baseia segundo o autor em uma “racionalidade argumentativa”, que permite a consideração das pesquisas historiográficas enquanto produção de orientação de sentido no tempo formulada com base em regras metódicas aceitas pela comunidade científica, que garantem o caráter especificamente científico do conhecimento histórico. Mas a racionalidade argumentativa própria da ciência histórica e o aspecto da regulação metódica não excluem a existência de outras racionalidades como a da política e da estética, enquanto presente na historiografia devido á sua função prática de orientação no tempo. A narrativa, portanto, faz parte da matriz disciplinar da história e constituiu aspecto do paradigma “narrativista” inerente á ciência histórica, “narrativismo”, aqui entendido enquanto o aspecto de orientador de sentido do conhecimento histórico, expresso na forma estética ou literária da narração.
Considerando os cinco elementos da matriz disciplinar da história: interesses, perspectivas, métodos, formas e funções. A questão da narrativa está relacionada tanto ás formas de apresentação quanto à função de orientação no tempo e na vida prática conferida ao conhecimento histórico. Desta maneira Rusen reformula o paradigma narrativista não enquanto uma oposição da arte aos elementos racionais e metódicos do conhecimento histórico, mas, enquanto um elemento da função da história de orientação de sentido e produção de formas de apresentação relacionadas aos objetivos de orientações relacionadas a este conhecimento. A crítica pós-moderna á racionalidade do conhecimento histórico é reformulada da negação em atribuir sentido racional á história para a reformulação de um conceito de razão que abarque os temas do relativismo cultural entre outros, de forma á que se construa um conceito de racionalidade que considere a crítica ao caráter etnocêntrico do conceito de razão dominante no século XIX:
“As formulações paradigmáticas já não devem mais servir para identificar a plenitude da diversidade do pensamento histórico como um tipo inequívoco de racionalidade, mas sim, destacar sua pluralidade, sua divergência e ambivalência, suas múltipla e heterogêneas mediações de muitas estratégias de pensamento e formas de apresentação”. (Ruzen, Razão Histórica, P.169).
A questão da narrativa entra aqui não enquanto uma negação da racionalidade da história, mas como um reconhecimento da diversidade de formas de apresentação que geram racionalidades distintas, já que não se trata mais de considerar apenas uma racionalidade inequívoca.
Os desafios lançados pelo debate em torno da narratividade da história tem possibilitado conclusões interessantes que criam novas abordagens para o fazer historiográfico. Considero como particularmente produtivas as abordagens que buscam não polarizar arte de um lado e ciência do outro enquanto dimensões excludentes, de forma a enfrentar o debate difícil dos limites da representação do passado pela história, tornando esta dificuldade, um tema produtivo de debates sem cair no extremo de afirmar um relativismo absoluto ou um pessimismo improdutivo quanto ás possibilidades de reconstrução do passado.
Seu Lucas, você ainda não segue meu blog!!!!
ResponderExcluirExcelente texto mas dá próxima vez ve se dá uma enxugada.
Abraços
rsrsrsr, pode dexar! ja estou seguindo, não deu pra cortar nada, ams confesso que ficou grande demais..., abração!
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