segunda-feira, 14 de março de 2011

Navegando na América: História e Hermenêutica (parte 2).



Por Lucas Machado

            O filósofo Hans Georg Gadamer parte da formulação Heideggeriana sobre o circulo hermeneutico para formular o que seria a “pré-estrutura da compreensão”. As condições prévias de possibilidade da compreensão de qualquer texto se baseiam em sua formulação em três elementos: a reabilitação do conceito de preconceito como condição prévia da compreensão; o reconhecimento da tradição enquanto momento de fusão do passado com o presente histórico; o significado hermeneutico da distancia temporal como recusa á premissa historicista da tentativa de “supressão” da distancia temporal e o reconhecimento do caráter produtivo da compreensão mediante o diálogo das perspectivas presentes do pesquisador com o passado.
Gadamer busca reconceituar os conceitos de verdade e método á partir de uma crítica que se situa numa posição intermediária, ou de diálogo entre as premissas do historicismo e do relativismo do conhecimento. Gadamer parte do princípio relativista de que o historiador não pode reconstruir o passado tal como ocorreu. Esta premissa parte da noção de que as fontes da pesquisa histórica não são um dado “transparente” que reflete objetivamente as condições do passado, mas sim um fragmento que permite uma compreensão parcial. A crítica ao preceito historicista de que o historiador pode reconstruir o passado em seus próprios termos, tal como ocorreu em seus próprios termos é crítica ao objetivismo, porém não cai no subjetivismo de considerar que a relativismo do conhecimento impede qualquer afirmação positiva sobre o que realmente ocorreu. Mediante mirar a interpretação histórica da coisa mesma, em suas condições próprias pode-se chegar á um conhecimento que tem a característica de uma verdade parcial ou transitória, por que pode ser ultrapassada mediante a realização de novas pesquisas, que através do diálogo intersubjetivo, aprofundam e qualificam o debate e o conhecimento sobre determinado tema histórico. A verdade deixa de ser considerada como algo a ser atingido mediante a aplicação de um método, que garanta a exatidão dos resultados e extinga a possibilidade de novas perguntas, para ser considerada como relativa O aprimoramento do conhecimento sobre o passado, se dá pela pesquisa e diálogo entre diferentes “miradas” á coisa mesma do passado, sem que se extingam as possibilidades de novas miradas que geram novos debates.
A reabilitação do conceito de pré-conceito se baseia na teoria heidegeriana do circulo hermeneutico, no qual a interpretação de um texto começa com uma pré-configuração de seus possíveis significados em totalidade, totalidade re-significada conforme a leitura e a compreensão do texto vão re-elaborando as visões gerais de totalidade. O conceito de pré-conceito foi duramente criticado pela tradição do iluminismo (Alfklarung), contribuindo para a formação do pensamento historicista e sua premissa de compreender a história em seus próprios termos. Gadamer critica a posição ingênua de considerar que o passado pode-ser entendido sem a influência do presente. A reabilitação do pré-conceito propõe uma consideração crítica pelo historiador de quais são as premissas de sua análise. O pré-conceito só assume uma característica pejorativa quando não passa pelo crivo da autocrítica e da reflexão acerca de quais são os elementos prévios do entendimento do passado considerados pelo historiador, ou expressando de outro modo, a necessidade de considerar criticamente a estrutura prévia da compreensão.
A desconsideração do pré-conceito leva á idéia equivocada, presente na premissa historicista, de que o passado para ser entendido enquanto tal deve ser compreendido através de uma “supressão temporal” que, suprimindo a distância entre o passado estudado e o presente do historiador, permita o “resgate” do passado enquanto tal. Para Gadamer, ao estudar o passado inserido em um contexto da tradição de um presente, o historiador não suprime o passado, nem deve buscar fase-lo, ao invés disto, ele deve considerar criticamente a tradição na qual está inserido para á partir dela, realizar um diálogo com o passado. A própria tradição é vista como um momento de “fusão de horizontes”, do passado com o presente. A tradição ela mesma ao mesmo tempo em que herda características do passado, as reelabora, de forma que a tradição se transforma. O principio hermeneutico da distância temporal está na possibilidade do diálogo entre o presente o e passado inserido na tradição, de forma a que a distância temporal passa a ser encarada como um fenômeno positivo, potencialmente criador.
Heinhart Koselleck em História e Hermenêutica busca um diálogo crítico entre a teoria da história e a hermenêutica gadameriana. O autor desenvolve a reflexão sobre as condições estruturais antropológicas da possibilidade do acontecer histórico, expresso no conceito de “Histórica”, campo de investigação acerca das condições de possibilidades do acontecer histórico, que através de uma abordagem da história dos conceitos, formulam pares de conceitos que expressam essas estruturas prévias do acontecer.  Para Koselleck, a história se valendo da teoria da compreensão hermenêutica, a ultrapassa, ao abordar por intermédio da linguagem, estruturas pré-lingüísticas e estruturas extralingüísticas. Ambas, a história e a hermenêutica utilizam a linguagem como meio para a compreensão, com a diferença que a história ultrapassa a linguagem ao considerar estes elementos “pré” e “extra” lingüísticos. Portanto se valendo do circulo hermeneutico, da consideração da estrutura prévia da compreensão e da realização do diálogo intersubjetivo, a teoria da história considera também outras questões que são particularidades não compartilhadas com outras disciplinas das ciências humanas.
O estudo da Histórica leva em consideração os elementos pré-linguisticos da compreensão histórica. Koselleck apresenta essa estrutura através da formulação de cinco pares de conceitos antitéticos. Ele parte do conceito heideggeriano de “Daisen”, que expressa a finitude do homem para dizer que a presença da morte, a consciência da finitude da vida humana é uma questão fundamental do acontecer histórico, ela dá origem ao primeiro par antitético, a contradição entre prever a morte e poder matar. A consciência da finitude da vida leva ao conhecimento da possibilidade de matar, de forma que este par antitético fundamental está na base de inúmeros conflitos presentes na história humana. Koselleck pretende transformar o Daisen heideggeriano em um Daisen histórico. Este primeiro par antitético nos leva ao segundo, o par amigo/inimigo, que remete á questão da auto-organização humana, de reconhecer o próximo como semelhante o distante como diferente e passível de ser morto. Para utilizar na análise histórica um par de conceitos como este, Koselleck propõe uma análise da sucessão dos pares, amigo/inimigo na história. O segundo par permite uma abstração que gera um terceiro par de conceitos, o interior/exterior, que remete á questão da espacialidade histórica, da existência inevitável de “unidades de ação social ou política que delimitam outras unidades de ação”. Desta oposição, deriva o par complementar, público/secreto como conceitos que demonstram a relação de organizações sociais que definem um espaço de diálogo, o público e um espaço próprio, exclusivo, o secreto. O quarto par é o da diferença entre as gerações, resultante da interação entre homem e mulher, da reprodução humana, que possibilita a consciência da existência das gerações. O quinto par está no fundamento estrutural da desigualdade de forças entre os homens, o par amo/escravo, que demonstra a “desnudada relação de poder entre os fortes frentes aos fracos”, como condição estrutural da história.
A “superação de todo proceder hermeneutico”, têm relação com elementos extralingüísticos da ciência da história. Primeiro, o historiador ao transformar textos em fontes para a elaboração de um objeto histórico, faz a ele perguntas não disponíveis na linguagem do próprio texto ou de sua época, o que significa que o historiador compreende o texto como uma fonte para compreender questões que vão além dele, ao contrário da postura do exegeta. Ao buscar compreender contextos extralingüísticos através do estudo da linguagem de um texto o historiador ultrapassa a compreensão hermenêutica. Em alguns casos, como na história econômica, as fontes textuais nem sequer se fazem presentes enquanto fontes de análise, de forma a que praticamente não se estabelece relação com a linguagem do período estudado. Koselleck pondera estas questões para formular uma teoria não hermenêutica da história, que, porém reconhecendo a linguicidade comum á história e á hermenêutica pondera que é necessária a consideração da linguagem para a compreensão da história em seus elementos que transcendem a hermenêutica. 
O horizonte da compreensão hermenêutica de Gadamer e suas implicações históricas estão presentes na reflexão dos historiadores Koselleck e Rusen. Ambos fazem o debate da relação entre objetividade e subjetividade buscando re-elaborar o caráter científico da história, consideram a importância da razão comunicativa e do debate intersubjetivo para o aprofundamento do debate historiográfico e também concordam com um conceito relativo de verdade, de forma a que o pensamento dos três autores encontra convergências, marcando diferenças nos aprofundamentos que os dois historiadores fazem acerca das condições de possibilidade da história e que de certo modo vão além da teoria hermenêutica de Gadamer. A teoria sobre a busca de orientação no tempo como condição de possibilidade da história, de Rusen pode dialogar com a reflexão de Koselleck sobre a Histórica, na medida em que se encontram de certo modo em um horizonte comum de buscar a formulação de uma teoria da história que transcenda o debate exclusivamente metodológico. Estes três importantes autores alemães sem dúvida possuem teorias que dialogam de modos de diversos acerca das do desafio da elaboração das possibilidades de uma teoria da história.  
   

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