Digníssimos marujos: damos aqui seguimento à análise do artigo anterior.
Por Tiago Magaldi
Podemos notar até aqui Zaffaroni propõe um verdadeiro modelo da dinâmica da criminalização, bastante perspicaz. O autor resume o seu modelo assim:
“Em síntese: a imensa disparidade entre o programa de criminalização primária e suas possibilidades de realização como criminalização secundária obriga a segunda a uma seleção que, em regra, recai sobre fracassadas reiterações de empreendimentos ilícitos que insistem em seus fracassos, através dos papéis que o próprio poder punitivo lhes atribui ao reforçar sua associação com as características de certas pessoas mediante o estereótipo seletivo”[1].
Não existe, nessa síntese, a referência necessária a desigualdades sociais ou algo semelhante a uma “origem” do poder punitivo. Essa definição significa uma tomada de posição quanto a tantas outras, às quais o autor se propõe a criticar. Das suas próprias páginas, no capítulo sobre o poder punitivo, constam críticas ao que ele chama de “pensamentos humanistas”, “concepção conspiratória” e, naturalmente, ao “biologismo criminológico”. Dessas, a crítica mais evidente é relativa ao cientificamente superado – mas talvez não ideologicamente superado – biologismo criminológico. Os adeptos dessa concepção sobre o crime – ou melhor, sobre o criminoso – advogavam a tese de que os crimes nada mais eram que sintomas de uma inferioridade racial. Cesare Lombroso, seu famoso fundador, observou que o contingente de aprisionados apresentava ampla maioria de imigrantes africanos e americanos, e concluiu que tal estereótipo cometia crimes porque seria próprio de sua natureza de seres humanos inferiores. A incongruência com as teses de Zaffaroni são evidentes: enquanto para este o estereótipo é causa da criminalização, para Lombroso é a causa do delito.
Quanto às outras duas críticas, temos primeiramente a relativa aos “pensamentos humanistas”, presente no seguinte trecho:
“(...) à medida que a comunicação oculta o resto dos ilícitos cometidos por outras pessoas de uma maneira menos grosseira e mostra as obras toscas como os únicos delitos. Isto leva à conclusão pública de que a delinqüência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade, e este conceito acaba sendo assumido por equivocados pensamentos humanistas que afirmam ser a pobreza, a educação deficiente, etc., as causas do delito, quando, na realidade, são estas, junto ao próprio sistema penal, fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentos sociais, mas, sobretudo, de sua criminalização, ao lado da qual se espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos dos outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmo com refinamento”[2].
Aqui fica claro que o autor contrapõe as concepções às quais ele dá o nome de “pensamento humanista”; são divergências quanto às causas do delito: enquanto esta corrente entende que as causas do delito são a ausência de elementos que inibiriam a sua prática, concluindo, então, que o fim da criminalidade se daria pelo incremento do acesso a tais bens, Zaffaroni argumenta que a ausência deles é a causa da criminalização. Isso porque, segundo ele, a conduta de agentes desprovidos de habilidades, quando cometem crimes, só pode resultar em um delito grosseiro (obra tosca), facilmente detectável e socialmente repugnante, que será, como dito acima, apresentado pela comunicação como os únicos delitos praticados. E como esses delitos cometidos de forma grosseira só podem ser feitos pelas classes subalternas que não receberam um adestramento como o das classes superiores, apenas aquelas são apresentadas para o público como delinqüentes. E então temos como resultado o estereótipo do criminoso.
Exemplo dessa corrente, no caso específico do Rio de Janeiro, podemos encontrar em declarações como
“A crescente desigualdade social acaba por fornecer elementos suficientes para que muitos optem por atividades ilícitas como meio de vida, sendo identificada não como uma das causas da criminalidade, mas como uma característica do criminoso, levando à associação entre pobreza e crime”.
E conclui em nota de rodapé: “A falta de oportunidade e mobilidade faz do jovem um exemplo claro desta afirmação”.[3]
Segundo esta declaração, existe uma causa para que os mais pobres passem a participar de crimes: a crescente desigualdade social os leva a optar por atividades ilícitas. E esta desigualdade, ao invés de ser identificada como causa da criminalidade, é identificada como característica do criminoso.
Essa idéia da pobreza como causa imediata e unívoca do delito é justamente o que Zaffaroni tenta desconstruir quando afirma que a pobreza e suas conseqüências são, na verdade, “fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentos sociais”. É importante que fique claro que essa crítica só pode ser feita partindo-se da premissa de que o que possibilita a criminalização de certos segmentos sociais não é o delito, mas a alta vulnerabilidade. O delito é apenas o pretexto utilizado para encarcerar aqueles que, por causa de sua estereotipação e, conseqüentemente, vulnerabilidade, já foram selecionados. Fica mais claro esse argumento na medida em que se perceba que, como dito antes, todo o programa de criminalização primária é um projeto faraônico, inviável, e que em toda sociedade são selecionados apenas alguns crimes a serem reprimidos. Assim, temos que a desproporção entre crimes realizados e efetivamente punidos é gigantesca e, portanto, ao lado dos ilícitos dos segmentos sociais subalternos “se espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos dos outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmo com refinamento”.[4]
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