sábado, 12 de maio de 2018

Modernidade, Pós-Modernidade, Multiculturalismo e Socialismo


Estive em Campos dos Goytacazes há uma semana atrás para dar uma aula de filosofia marxista. Aproveitei a oportunidade para discutir temas que competem a uma compreensão básica do método materialista histórico e dialético, desenvolvido por Marx e Engels, e também aqueles que os sucederam. Surpreendentemente, o debate ao fim da apresentação trazia para polêmicas de ordem contemporânea e, especialmente, ao tema dos movimentos sociais identitários e sua possível relação com o pós-modernismo. Entendo que, para ter uma justa posição a respeito do assunto, se faz necessário ir além do sim ou não, compreender a questão no processo histórico que a contextualiza, e isto me motivou a escrever este texto. Naturalmente, não sou o primeiro a escrever sobre o assunto, mas não me esgotarei em referências, visto que este artigo tem um caráter ensaístico, e visa atender a questões de ordem prática.
Penso, em primeiro lugar, que muito se trata da pós-modernidade sem discutir a modernidade em si mesma. Incorrem neste erro, por exemplo, setores institucionalizados da esquerda, que reduzem sua atuação à esfera do Estado, como se defender um projeto de nação, pensar a política por meio da totalidade e não do particular, fosse sinônimo de construir uma prática degenerada e eleitoralista. Fazem-no para desacreditar aqueles que não conseguem dirigir, e para justificar seu afastamento da luta política empreendida pelo povo hoje.
Mas, para não cair no mesmo erro, vamos compreender do que se trata a modernidade. Seu significado paira no senso comum como o tempo do progresso, do avanço científico e tecnológico, da vida em civilização, do domínio da natureza pelo homem. O tempo da razão.
A modernidade é o tempo do poder da burguesia enquanto classe, e não à toa estes, que são seus pressupostos ideológicos mais básicos, permanecem hegemônicos. Ao menos desde 1848, Marx e Engels já os denunciavam, não pelo simples contraponto de ideias, mas através da exposição da contradição desta realidade. Portanto, se a ideia de progresso e civilização ordena tanto nossas vidas, o que ela esconde é a exploração do trabalho, a desigualdade de condições de vida entre as classes, e seus interesses que são inconciliáveis. Neste sentido, o avanço das máquinas, da tecnologia, serve à acumulação de capital, e não ao bem da humanidade, noção esta que para Marx mais uma vez era uma falsificação ideológica da classe dominante. Os avanços da medicina mais uma vez servem à acumulação da indústria farmacêutica, protegida por suas patentes e monopólios. O avanço tecnológico serve à competição entre as grandes potências imperialistas e suas guerras. Exemplos não faltam.
Alguns estudiosos latino-americanos da linha da “colonialidade do poder”1 estenderão ainda mais o período da Modernidade, argumentando que ela se inicia com a empresa colonial, com a acumulação primitiva de capital e a expansão dos mercados europeus para o “Novo Mundo”. Neste sentido, toda a riqueza e avanço científico advém do trabalho colonial, escravo, e da espoliação dos continentes americano, africano e asiático. Neste sentido, a colonialidade seria o par inseparável da modernidade.
Portanto, enquanto comunistas devemos entender que o centro de toda riqueza do mundo contemporâneo advém da exploração do trabalho. Enquanto latino-americanos, devemos saber que a modernidade chegou como desgraça para nossos povos, através da colonização e da escravidão. Resistir e avançar passa por criticá-la.
No entanto, contraditoriamente, o marxismo e o socialismo são produtos da Modernidade. São produtos da própria contradição da Modernidade: toda a ordem estabelecida repousa na miséria concreta e espiritual dos povos do mundo, e contra ela propomos uma nova ordem, o socialismo e o comunismo. Enquanto projeto político, o socialismo é também uma proposta total de sociedade, organizada sob o poder da classe trabalhadora, que rompe com a exploração do trabalho e tem por fim garantir condições sociais plenas a todos, diferente da sociedade capitalista, que é voltada para a troca de mercadorias e para a acumulação de capital.
Neste aspecto, o projeto de socialismo se diferencia por completo do pós-modernismo. Como vimos, no socialismo a totalidade deve contemplar o particular. No pós-modernismo, o particular exerce domínio sobre o total, ou mesmo, o total seria inatingível. Neste sentido, não há possibilidade de representação: não há possibilidade de se mediar com a esfera particular, já que a parte é plena. Neste sentido, o Estado, as associações da sociedade civil, as agremiações livres de todo o tipo, não podem contemplar o indivíduo, este sim pleno e inconfundível. As opressões vividas em sociedade tampouco podem serem vistas em conjunto: são elas distintas entre si e só podem ser superadas mediante ação individual de questionamento às representações que a sustentam.
Como se pode ver, há uma distinção de partida: a visão sobre o que é o poder. Enquanto para os comunistas o poder é concreto, materializado no domínio de uma classe sobre a outra, e o Estado e as representações são as esferas onde este poder se manifesta, para o pós-modernismo as representações são o próprio poder, e não guardam relação concreta com nenhum agrupamento social. O concreto para eles não existe, tudo se restringe à crítica às representações.
Posto isto, há ainda mais um elemento para discutir as lutas contemporâneas: o multiculturalismo. Compreendo este fenômeno como derivado de uma prática política de contestação nos Estados Unidos da América feita sobretudo pelo movimento negro e de mulheres. A luta histórica contra as opressões, advindas de um capitalismo colonial2 desenvolvido em toda a América, converteu-se em uma luta por direitos políticos, sem que a discussão econômica entrasse em pauta. Basicamente, uma luta por inclusão no regime liberal estadunidense. O problema desta lógica reside em que a fonte destas opressões permanece intocada, e com isso se pode avançar na área do reconhecimento cultural, porém não no terreno da redistribuição (FRASER, 2003).
Com tudo isto colocado, podemos dizer que o movimento negro, o movimento feminista, e o movimento LGBTI são em essência pós-modernos? Respondo categoricamente que não. Evidentemente, as ideias pós-modernas tem ganhado destaque no debate contemporâneo, inclusive no Brasil. Isto reforça, sem dúvida, o caráter fragmentado da luta política no país, mas não é a única variável. O processo político do neoliberalismo deixa também rastros estruturais, ou seja, a classe operária foi fragmentada nos anos 1990 através das políticas intensas de reestruturação produtiva: demissões em massa, aumento do mercado informal de trabalho, pulverização da estrutura sindical, entre outros. Os movimentos identitários são, neste sentido, respostas organizativas de “novo” tipo às opressões que tem por fundo a acumulação de capital.
Sobre a política debatida, é preciso olhar caso a caso. O socialismo não está na pauta da luta dos trabalhadores atualmente. É preciso divulgá-lo. Os movimentos identitários não escapam disto, e se convertem em grande leito para a filosofia pós-modernista e para a política multiculturalista, mas entendo que isto não seja razão para abandoná-los; ao contrário, é preciso perceber a justiça de suas motivações e disputá-los, de maneira que sejam espaços para veiculação de um projeto total de sociedade, a fim de superar a fragmentação. Entendo que isto já esteja em curso por meio de negros, mulheres e lgbt's comunistas, a prova disto foram as ideias apresentadas pelas professoras no curso da UJS Goytacá.


FRASER, Nancy. "Da Redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da Justiça na Era Pós-Socialista" in. SOUZA, J. (org). Democracia Hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2003.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. p.107-126.
WALSH, Catherine.. Interculturalidad y colonialidad del poder. In : CASTRO-GOMEZ, Santiago e GROSFOGUEL, Ramon. El Giro Decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global . Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontifi cia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.


1Ver Aníbal Quijano e Catherine Walsh.
2Esta ideia tem por influência o Manifesto de Tiwanaku (1973), primeiro documento boliviano onde se desenvolve a ideia, que visa mostrar como as opressões de classe e raça funcionam entrelaçadas, num tipo de dominação tipicamente americana.

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