terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Criminalização: a contribuição de Zaffaroni - Parte I

           
Queridos amotinados e navegantes em geral, perdoem a prolongada ausência. A vida de um amotinado não-bolsista é dura! De volta ao nosso tema:




Por Tiago Magaldi

No artigo anterior pincelamos um quadro geral do estudo acerca da criminalização. Neste ponto é imprescindível citar a contribuição de Eugenio Raúl Zaffaroni, ministro da Suprema Corte Argentina e renomado criminólogo, com os escritos que dedica à temática da “seletividade punitiva”. No seu estudo o autor busca justamente sintetizar e coesionar as idéias que expomos anteriormente, presentes nessa mudança de postura quanto à temática do crime iniciada com a teoria da reação social. Mas o faz de uma forma também crítica e elaborando um modelo que desloca as conclusões sobre o processo de criminalização para além da mera admissão de sua existência. Ele identifica dois tipos de criminalização: primária e secundária.
A criminalização primária caracterizaria o ato legislativo que estabelece um programa punitivo (o “ponto de vista” de citado anteriormente), um rol de tipos de crimes aos quais deve-se subsumir as condutas criminosas correspondentes. Essa criminalização é levada a cabo pelo que o autor chama de “agências políticas”. A próxima “fase” do modelo estabelecido por Zaffaroni é a da criminalização secundária, que significa a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas: a ação punitiva deixa sua característica abstrata e impessoal da criminalização primária e passa a se efetuar na realidade. Partindo daqui, o autor descreve o “funcionamento” de uma seleção, que será feita na sociedade para determinar quem serão os criminalizados, os vitimizados e os policializados.
Zaffaroni começa argumentando que todo programa de criminalização primária é imenso (“faraônico”) e, portanto, impossível de ser realizado completamente. Nem perto disso. A capacidade operacional das agências de criminalização secundária é infinitamente limitada se comparada ao programa de criminalização primária. De fato, uma rápida vista no nosso código penal nos faz concluir desta forma. A quantidade de condutas tipificadas é enorme! Essa disparidade leva à necessidade de uma seleção que garantirá um cumprimento mínimo do programa.
A atividade de seleção se realiza, portanto, pelas agências policiais, mas não segundo o seu critério exclusivo. Elas se valem das orientações estabelecidas pelo que o autor chama de “empresários morais” – agentes ideológicos que, através de uma atuação comunicativa, influenciam a opinião pública -, que podem ser quaisquer agentes que realizem um fenômeno comunicativo. “Não importa o que seja feito, mas sim como é comunicado”. Por conta de sua incapacidade de dar conta do programa punitivo, o crime punido será sempre a exceção, e a impunidade, a regra. E por este motivo os empresários morais terão sempre fundamentação de seu discurso acerca da impunidade. O resultado desta dinâmica é que não será a punição de fato o remédio para a tensão social criada por esses agentes, mas medidas que visem retirar a “centralidade comunicativa” das suas reivindicações.
A última parte do parágrafo anterior é fundamental para entender a dinâmica da seletividade como Zaffaroni a apresenta: como quem cria as necessidades punitivas não é a impunidade ou o aumento dos crimes cometidos de fato, mas o maior ou menor alarde feito por esses empresários morais, a seletividade recairá sobre aqueles que têm menos acesso ao poder político, econômico ou comunicativo, ou seja, sobre aqueles que não possuem meios de obter ou convencer um empresário moral que o apóie. Em suma: aqueles cuja punição causará menos tensão na esfera pública.
A punição dessas pessoas, potencializada pelos agentes comunicativos que não lhes dão o acesso aos meios de comunicação, cria uma imagem pública do delinqüente, um estereótipo, que orientará novamente a seleção secundária, realimentando a dinâmica. Assim, as agências policiais selecionam aqueles que possuem o “figurino social dos delinqüentes, prestando-se à criminalização – mediante suas obras toscas – como seu inesgotável combustível”. Assim, temos que “[a comunicação] mostra as obras toscas como os únicos delitos. Isto leva à conclusão pública de que a delinqüência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade”.
O autor identifica três possibilidades de criminalização: 1) conforme ao estereótipo; 2) por comportamento grotesco ou trágico; e 3) devido à falta de cobertura. Desde que foi citado, estivemos falando do primeiro tipo. Os outros são encontrados com muito menor freqüência no sistema penal real. O segundo caso se trata de casos de pessoas que não se encontram dentro do estereótipo criminalizado, mas se tornaram vulneráveis ao poder punitivo por um eventual comportamento grotesco; o terceiro caracterizaria a punição por retirada do véu de invulnerabilidade ocasionada por eventuais disputas políticas ou econômicas. Aqui podemos citar como exemplo o caso do banqueiro Daniel Dantas e tantos outros. Segundo o autor, casos como esse servem para alimentar a ilusão de que o sistema pune de forma igualitária e “encobrir ideologicamente a seletividade do sistema[1].
Na dinâmica estabelecida pelo autor, portanto, cada pessoa está em um certo estado de vulnerabilidade ao poder punitivo que será diretamente proporcional à semelhança do indivíduo com o estereótipo criminalizado. Quem não se enquadra no estereótipo deve estar necessariamente inserido em uma zona especial que o coloque em situação de vulnerabilidade. Compreende-se, assim, a presença de classificações de tipos de criminalização por “comportamento grotesco” ou “falta de cobertura”.
Dessa forma, as conseqüências da desigualdade social, em especial a falta de acesso à comunicação e/ou ao debate político, nada mais são que condições de entrada no circuito punitivo, não a sua causa. A seletividade do poder punitivo “é estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do candidato[2].

Sinal preto!


[1] Ibid. p. 50
[2] Ibid. p. 51

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