segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Movimentos que agitaram o ano de 2011 propõem reflexão sobre liberdade - Slavoj Zizek


Esta é uma excelente reflexão do filósofo Slavoj Zizek sobre as grandes manifestações populares do ano de 2011, recomendada por nosso colunista Lucas Machado. O texto foi retirado do site Uol Notícias, e a tradução feita por Debora Weinberg. Segue abaixo:
Por Slavoj Zizek

Pensando nos protestos de Ocupe Wall Street e em outros clamores similares em torno do mundo, lembrei-me do autor britânico John Berger, que há alguns anos descreveu como "as multidões têm respostas para questões que ainda não foram feitas... As questões ainda não foram feitas porque, para tanto, são necessárias palavras e conceitos que soem verdadeiros, e os que estão em uso atualmente para dar nome aos eventos perderam o significado: democracia, liberdade, produtividade, etc. Com novos conceitos, as questões logo serão feitas, pois a história envolve precisamente tal processo de questionamento".
Os manifestantes de Ocupe Wall Street e seus defensores têm as respostas. De fato, bombardeamos os manifestantes com perguntas, só não fizemos ainda as questões certas.
"Mas o que vocês querem?", perguntamos. "Quais são suas demandas concretas?"
Essa pergunta quer precisamente impossibilitar a verdadeira resposta – o ponto dela é: "Diga nos meus termos ou cale a boca!"
É uma questão que efetivamente bloqueia o processo de traduzir um protesto incipiente em um projeto concreto.
Os manifestantes de Ocupem Wall Street estão chamando atenção para dois pontos importantes. Primeiro, que o sistema capitalista global tem consequências destrutivas: considere as centenas de bilhões que foram perdidos devido à especulação financeira desenfreada.
Em segundo lugar, essa globalização econômica, de forma gradual, mas inexorável, está minando a legitimidade das democracias ocidentais. As grandes transações econômicas entre agentes internacionais não podem ser controladas pelos mecanismos democráticos, que são --por definição-- limitados às nações. Assim, as formas democráticas institucionais são cada vez menos capazes de capturar os interesses vitais do povo.
A cruz dos protestos de Wall Street é a seguinte: como expandir a democracia para além de sua forma política multipartidária estatal, que é obviamente impotente diante das consequências destrutivas da vida econômica?
O que não falta hoje é sentimento anticapitalista. Há uma sobrecarga de críticas aos horrores do capitalismo: há inúmeros livros, investigações jornalísticas profundas e reportagens de televisão sobre as empresas que estão poluindo impiedosamente nosso ambiente, sobre banqueiros corruptos que continuam a receber gordos bônus enquanto seus bancos são salvos pelo dinheiro público, de oficinas onde crianças trabalham em turnos extenuantes.
O que não é questionado é a estrutura democrática liberal para combater esses excessos. A meta explícita ou implícita de tais críticas é democratizar o capitalismo, é estender o controle democrático para a economia, por meio da pressão da mídia, de inquéritos governamentais, de leis mais duras, de investigações políticas honestas e assim por diante. Mas nunca, jamais questionamos a estrutura institucional democrática do Estado de direito. Esta é a vaca sagrada que nem mesmo as formas radicais de anticapitalismo ético –pense no fórum de Porto Alegre, no movimento de Seattle- ousam tocar.
Considere a versão espanhola dos manifestantes de Ocupe Wall Street, os indignados. Eles negam toda a classe política, direita e esquerda, acusando-a de ser corrupta e controlada pelo desejo do poder. Ainda assim, a quem os indignados voltam suas demandas por mudança? Não a eles próprios: os indignados (ainda) não alegam que (para parafrasear Gandhi) eles mesmos têm que ser a mudança que querem ver. Seu clamor se volta contra os que estão no controle --exatamente aqueles contra os quais estão protestando.
Marx não acreditava que a questão da liberdade deveria ser localizada propriamente na esfera política. Ele não concordaria com a forma que as instituições ocidentais comumente abordam graus de liberdade quando querem julgar um país: há eleições livres? Os juízes são independentes? A imprensa é livre de pressões veladas? Os direitos humanos são respeitados?
A chave para a verdadeira liberdade, acreditava Marx, reside na rede "apolítica" de relações pessoais, desde o mercado até a família. É ilusório esperar que uma pessoa possa efetivamente mudar as coisas "estendendo" a democracia.
Mudanças radicais devem ser feitas fora do âmbito dos direitos legais. "A ilusão democrática", a aceitação dos mecanismos democráticos institucionais como a única força de mudança, como a forma "correta", simplesmente impede a mudança radical.
Em meados de abril de 2011, os noticiários informaram que o governo chinês tinha proibido filmes e séries de televisão que lidam com viagens no tempo e teorias alternativas da história, acusando-os de introduzir a frivolidade em questões históricas sérias. Os chineses as consideram perigosas demais até a fuga ficcional para uma realidade alternativa.
No Ocidente liberal, não precisamos dessas proibições explícitas; a ideologia exerce suficiente poder sobre nós para impedir que narrativas alternativas da história sejam levadas a sério. Nós nos censuramos. Há certas questões que precisamos fazer.
Em uma antiga piada muitas vezes atribuída à defunta República Democrática Alemã, um trabalhador alemão recebe um emprego na Sibéria. Ciente de como toda correspondência será lida pelos censores, ele diz aos amigos: "Vamos estabelecer um código: se vocês receberem uma carta minha escrita em tinta azul comum, é verdadeira; se for escrita em vermelho, é falsa."
Após um mês, seus amigos recebem a primeira carta, escrita em tinta azul: "Tudo é maravilhoso aqui: as lojas são cheias, a comida é abundante, os apartamentos grandes e adequadamente aquecidos, os cinemas mostram filmes do Ocidente, tem muitas garotas bonitas prontas para se envolverem –a única coisa que não tem é tinta vermelha."
Não será esta nossa situação hoje?
Temos todas as liberdades que se pode querer –a única coisa que não temos é a tinta vermelha.
O que essa falta de tinta vermelha significa é que, hoje, os termos que usamos para designar os conflitos que nos cercam –"guerra ao terror", "democracia e liberdade", "direitos humanos"- são falsos. Eles mistificam nossa percepção da situação em vez de nos permitir pensar a respeito dela.
Nos sentimos "livres" porque não temos os termos para articular nossa falta de liberdade.
Vamos dar tinta vermelha aos manifestantes.
* Filósofo político e cultural nascido na Eslovênia, Zizek é pesquisador da Universidade de Ljubljana na Eslovênia, professor da Escola de Pós-Graduação da Europa na Suíça e professor visitante em uma série de universidades norte-americanas.

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