quinta-feira, 2 de abril de 2015

Uma análise materialista de "As Crônicas de Gelo e Fogo"

Para construir minha análise sobre a história de George R.R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo, passarei por alguns acontecimentos que julgo fundamentais para então passar aos argumentos.


Acontecimentos que constroem a perspectiva geopolítica da história:

- A rebelião de Robert Baratheon

  Robert Baratheon e Ned Stark lideraram uma rebelião contra o rei louco Aerys Targaryen. Além de diversos assassinatos de nobres, o filho de Aerys, príncipe Raehar Targaryen, sequestrou a irmã de Ned Stark, prometida em casamento a Robert. Há controvérsias se foi um sequestro ou uma fuga consentida, um ato passional.

  Além das famílias Baratheon e Stark, também se uniram à causa a família Tuly, Arryn, seus demais vassalos e, por último, a família Lannister.

  Tywin Lannister, então Mão do Rei Aerys, virou-se contra o monarca quando a causa estava perdida. Seu vassalo, Gregor Clegane, o Montanha, estuprou e matou a mulher dornesa do Príncipe Rhaegar e também seus filhos. O filho de Tywin, Jaime Lannister, então guarda real, matou o rei louco, ficando conhecido como Regicida. A filha de Tywin, Cersei Lannister, foi casada com Robert Baratheon, se tornando rainha e rei, e, dando fim à qualquer possível inimizade entre as famílias.

  Ned Stark era casado com Catelyn Tully e John Arryn com Lisa Tully. A união entre essas três famílias garantiu a unidade política no Norte. O novo rei, Robert Baratheon, nomeou Ned Stark Protetor do Norte, e fez de John Arryn a Mão do Rei. O casamento com Cersei Lannister garantiu a unidade do reino.

  A família Targaryen, de tradição que remonta aos tempos da Valíria, foi eliminada. Conseguiram escapar dois filhos do rei louco: Viserys e Daeneris.

- O transcorrer da história

  John Arryn, Mão do Rei, já tinha mais de 80 anos quando morreu. No entanto, Catelyn Stark recebeu uma carta com uma denúncia de envenenamento de sua irmã e viúva, Lisa Arryn. Ned Stark, agora empossado como Mão do Rei, se dedicou a descobrir os responsáveis pela morte do cunhado.

  Seguindo as pistas do mesmo, Ned descobre que John Arryn foi envenenado pelos Lannisters por haver descoberto que os filhos da rainha Cersei eram do próprio irmão, o Regicida, e não do rei. Este episódio coincide com a morte do rei Robert e a nomeação do filho bastardo Joffrey. Ned Stark foi morto a mando de Joffrey por levar a cabo suas denúncias, mas antes enviou uma carta a Stannis Baratheon, irmão de Robert, dizendo que este era o legítimo herdeiro do trono.

  A poderosa unidade do reino estava desfeita. Stannis se pôs em guerra contra os Lannisters, Robb Stark, filho de Ned, se declarou Rei no Norte e também se levantou contra a capital, Porto Real, a fim, além de outras coisas, resgatar suas irmãs Arya (desaparecida) e Sansa, feita prisioneira.

  Robb e Catelyn, além de vários senhores do Norte, são mortos numa armadilha criada por Walder Frey, em acordo com Tywin Lannister. Participou da trama também Roose Bolton, que foi nomeado Protetor do Norte por Tywin Lannister, que praticamente toma as decisões pelo neto.

  Dessa maneira a situação política parece resolvida para os Lannisters. A família Stark foi estraçalhada, tomaram o poder no Norte através de Roose Bolton, o futuro casamento de Joffrey com Margaery Tyrrel também parece assegurar paz no sul. Stannis ainda reúne forças após fracasso no ataque à capital.

  Joffrey é envenenado em seu casamento. Seu tio anão, Tyrion Lannister, e sua agora esposa, Sansa Stark, são responsabilizados. Ela consegue fugir numa trama armada por Mindinho, homem das moedas do reino e dono dos prostíbulos de Porto Real.

  A história revela que Mindinho e Olena Tyrrel, mãe de Margaery Tyrrel, tramaram a morte de Joffrey. Mindinho se casa com Lisa Arryn e em seguida a mata, tomando posse de seu castelo. Durante a briga é revelado que os dois, juntos com os Lannisters, tramaram a morte de John Arryn e provocaram a guerra.

  Tyrion foge e mata seu pai, Tywin. Cersei e o Regicida são os Lannisters que restaram e não estão se dando muito bem. Mais à frente, em sua disputa pessoal com a noiva do filho e com a família Tyrrel, Cersei concede aos fiéis da crença dos sete o direito de se armar, acreditando estar assim reunindo aliados.

  O fundamentalismo da Igreja e seu crescente poder a levam a prender a rainha Cersei por crimes de luxúria. Ela é destituída dos poderes e exposta à punição pública, dando espaço ao crescimento da influência dos Tyrrel sobre o reino.

A Magia:

  A história começa com dois homens fugindo de criaturas sobrenaturais: os Outros, ou Caminhantes Brancos. São seres dos quais não se sabe bem a origem, mas vem das regiões mais frias do continente, no extremo Norte. Tem a pele branca, olhos azuis e parecem matar seres humanos indiscriminadamente. Só podem ser motos pelo fogo ou por ataque com aço valiriano.

  Uma grande muralha de gelo separa os "Sete Reinos" dessas regiões. Ela teria sido construída 8 mil anos antes dos acontecimentos atuais e foi feita para proteger os homens desses seres, e, portanto, em sua construção foi usada magia também. A muralha é defendida pela Guarda da Noite, uma irmandade que se propõe a defender os homens desses seres malignos. "Vestindo o preto" não se pode mais casar, ter filhos ou mesmo se envolver em disputas políticas do reino. Além dos Caminhantes Brancos, fala-se em gigantes, duendes, wargs e filhos da floresta.

  O lobo de Sansa é sacrificado logo no início, e a loba de Arya foge. Mais tarde fala-se em uma matilha de lobos que estaria atacando as redondezas de Porto Real, liderada por uma loba-gigante, que tudo indica ser Nymeria, loba de Arya.

  Sugere-se que John Snow, assim como seu irmão, pode entrar na mente de seu lobo-gigante, ou seja, é um warg, o que levanta especulações sobre a relação mágica dos Starks com seus lobos. Uma das famas que Robb adquiriu durante a guerra é de que se transformava em lobo antes das batalhas.

  Daeneris Targaryen também conseguiu chocar três ovos de dragão. Os dragões não eram vistos desde os tempos da conquista de Aegon Targaryen, quando morreram em uma guerra civil entre Targaryens. Dragões são entendidos como criaturas mágicas, oriundas da antiga Valíria. Segundo algumas profecias, o cometa vermelho que apareceu no céu corresponde ao nascimento dos dragões de Dany.

  Ao Norte da Muralha existia um homem chamado Craster que tinha uma espécie de pacto com os Caminhantes Brancos, oferecendo seus filhos recém-nascidos em sacrifício para manter seu acampamento intacto. Na série de TV, há um ritual de transformação do bebê em caminhante branco, o que sugere que exista uma inteligência nessas ações.

  Uma das religiões que é importante destacar é a crença em R'hollor, o Senhor da luz. Trata-se de um credo extremamente maniqueísta, que opõe o Senhor da Luz àquele "que não se deve dizer o nome". A sacerdotisa Melisandre conduz o pretenso rei Stannis à muralha para combater o mal, acreditando ser ele o herói Azor Ahai renascido. Neste momento fica claro que o mal está significado na existência dos caminhantes brancos.

Análise e especulações

  A história relatada em "As Crônicas de Gelo e Fogo" tem, na minha opinião, um debate central: a teia de relações que constituem a política e a cultura. Podemos ver nela conjecturas filosóficas sobre o poder nas conversas entre Varys e Tyrion Lannister, ou no curto embate entre Cersei e Mindinho, ou até mesmo nas explicações do avô Tywin Lannister sobre como um rei deve agir. Podemos ver também o conflito entre as verdades dos povos: o que para os westerosi é a vida civilizada, para os dothraki é covardia, "esconderijos de pedra"; já para o "povo livre", os westerosi são "ajoelhadores", estranhando suas hierarquias.
  Portanto, àqueles que iniciam a crítica pela estética, devo dizer que não captaram a mensagem. Dragões, zumbis e magia ajudam a constituir um universo, que, na verdade, é uma paródia do nosso. Diversas referências à história contada da humanidade estão ali: os povos saqueadores do norte da Europa estão representados nos homens de ferro, a Muralha de Adriano como o limite do Império Romano e todos os diversos choques entre culturas, mitos e produção de crenças.
  Com isso, as especulações que aqui desenvolvo não dizem respeito a uma luta do bem contra o mal, à união de personagens que admiramos, até porque a morte de Ned e Robb Stark já foram provas suficientes de que o maniqueísmo, enquanto lógica de visão de mundo, é combatido nessa história. Dizem respeito ao realismo defendido por George R. R. Martin, tomando como centro a política e a vida social.
  Em suas representações da história da Europa, Martin joga com acontecimentos históricos distintos. A guerra de Robb Stark contra os Lannisters puseram o reino numa grave situação de fome e miséria, causando inclusive revoltas camponesas, como sugere a cena do ataque ao rei Joffrey e o discurso em praça pública de um súdito não identificado. Também o episódio do corte da mão de Jaime Lannister é marcado por um sentimento de ódio à nobreza.
  O reino de Westeros está endividado, assim como o outro candidato ao trono, Stannis Baratheon, também pediu ajuda ao Banco de Bravos. Tudo isto sugere uma comparação com o surgimento da burguesia na Europa, onde o desenvolvimento das trocas comerciais foi acompanhado da centralização econômica e política dos Estados Nacionais. Para que se fechasse a equação, era necessário apenas o empreendimento das Grandes Navegações, que talvez fuja à dinâmica da narrativa, mas devemos lembrar que "Euron Olho-de-Corvo" navegou por "águas nunca navegadas", e que os homens de ferro acreditam que um povo vindo do Oeste habitou as ilhas antes deles.
  Outro aspecto histórico retratado é o fortalecimento da Igreja Católica.  A "crença nos ete", que são apenas um, é uma adaptação da "Santíssima Trindade". Quando a rainha Cersei concede ao Alto Septão o direito que a seita possa se armar, cavaleiros de todo o reino se juntam a ela. Em seguida a própria rainha é submetida a julgamento. Este é mais um aspecto da crise da ordem política instaurada em Westeros; a religião almeja o poder, ao passo que a aliança Lannister-Tyrrel está abalada.
  Sem poder prever o final, creio que este deva ter a ver com o declínio do poder do Trono de Ferro. Seria coerente com o processo que está se desenhando. No entanto, entrarei no debate sobre os personagens, a partir das informações que temos até agora.
  John Snow adquire um papel improvável se vemos sua trajetória, que é o de unificar, por meio da autoridade, Guarda da Noite e selvagens, identificando que os inimigos são os Caminhantes Brancos. Dessa maneira, fica mais próximo aos interesses de Melisandre que Stannis, que marcha para o sul. Isto alimenta as teorias de que John na verdade seria filho de Lyanna Stark com o príncipe Rhaegar, e que aos olhos de Melisandre seria o verdadeiro Azor Ahai.
  Outra incógnita é a personagem Daeneris Targaryen. Até então não se colocou em conflito sua condição de nobreza com os seus ideais abolicionistas. Conquistadora, começa a perceber que a supressão da escravidão pela força não pôde dar lugar a uma outra ordem social, já que não houve a constituição de uma sociedade civil que correspondesse a ela. Dessa maneira, Dany se converteu em uma líder autoritária, padrão de poder talvez avesso às culturas das cidades livres, e, passou a ter que lidar com movimentos de reação, tanto por parte de ex-mestres de escravos como dos próprios ex-escravos. Isso se manifestou em guerras e até mesmo em guerrilhas urbanas.
  Resta agora saber se, diante da crise, buscará se repactuar com estes segmentos sociais das cidades livres, ou se abandonará essa tentativa e seguirá os passos de seu antepassado Aegon, o Conquistador, levando seus dragões a Westeros e tomando o poder pelas guerras.
  Outra disputa importante é o domínio do Norte. A princípio, tudo está resolvido para Roose Bolton: tem a concessão real, o maior exército no território e uma falsa Arya Stark casada com seu filho. Por outro lado, sabemos como é forte o poder da família Stark na região, e basta o surgimento de um deles para que se reorganize um exército contra o rei. Há também a pretensão de Stannis. E indo mais longe, há que se pensar o impacto cultural que pode ter a aceitação do povo livre ao sul da Muralha. De toda maneira, penso que essa é uma questão decisiva para a resolução da história.
  Além de tudo isso, sem dúvida é interessante saber qual é o propósito dos Caminhantes Brancos, afinal configuram como uma parte importante do caos construído pelo autor. Todavia, penso que isso deva trazer revelações à história, mas não comprometer toda a sua resolução.

2 comentários:

  1. Duas correções: o maior exército está nas mãos dos Tyrell e não dos Bolton, e os Outros não morrem pelo fogo, os mortos por eles reanimados que morrem. Ótimo texto, mas quem não leu/assistiu tudo toma uma chuva de spoiler! Kkkk

    ResponderExcluir
  2. Tem esse problema...rsrs
    Obrigado pelo comentário, Danilo. Aproveite e conheça mais o blog.
    Abraço

    ResponderExcluir