segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A saúde pública na visão de um homem sem poderes mágicos

Na segunda-feira da semana passada acordei com os movimentos do lado direito da face comprometidos. Uma constatação bastante alarmante para um sujeito que teve duas avós vítimas de AVC's. Tomei a imediata decisão comum a nós brasileiros: fui a um médico.
Entre nós é comum aconselhar esta atitude: "Vai logo a um médico, cara!". É preciso notar, em primeiro lugar, que esta é uma possibilidade que se ampliou para muitos brasileiros nos últimos anos. Consultas com médicos são caras, planos de saúde são caros, mas o aumento do poder de consumo da classe trabalhadora também permitiu que se trate a "saúde" como um bem, um objeto de desejo, de modo que recentemente veio a compor inclusive a agenda de protestos no Brasil.
Por outro lado, eu tenho o péssimo hábito de buscar os valores fundamentais por trás daquilo que se expressa através da fala. Quando se espera uma boa saúde, em última instância se pensa que os médicos deveriam ganhar mais, se dedicarem mais aos pacientes e que se formem "mais médicos". Não que alguém fosse ser contra tais coisas, mas a concentração de conhecimento que estes oráculos dispõem e a maneira como lidam com os pacientes deveria ao menos ser questionada. Sigo com meu relato.
A minha paralisia se devia a um "golpe de ar frio". Um vento. A mim foi perguntado se tenho o hábito de tomar banho quente, se me recordava de ter pego um vento frio. Este oráculo é forjado nas técnicas dos pequenos venenos, das pequenas doses e avesso a magias de alto impacto. Dessa maneira, me fez sua receita e me recomendou outro oráculo, dessa vez sábio nas técnicas dos movimentos, dos nervos.
Fui no segundo. Fui diagnosticado com uma paralisia no nervo causada por uma virose ou pelo tal golpe de ar frio. Este é adepto de utilizar todas as substâncias mágicas possíveis e me recomendou drogas poderosas e me pediu um exame de sangue. Confuso, liguei para o primeiro e ele me orientou a fazer os dois tratamentos.
O uso do termo oráculo é alegórico, evidentemente, e se refere aos estudos do antropólogo britânico Evans-Pritchard sobre a noção de bruxaria entre os Azande, tribo do norte da África, para a explicação de diversos infortúnios do quotidiano. Para eles, existiam homens que são bruxos de nascença, contém a "substância-bruxaria" no corpo e causam infortúnios a outros. Lá também a solução é a consulta de oráculos e também esta consulta está ligada à condição de riqueza, medida na quantidade de galinhas que se tem.
O leitor muito atento logo me interromperá insatisfeito dizendo que tudo isto se trata de crendice, e não ciência. Devo alertá-lo que entre os Azande o raciocínio lógico também é recorrente. A bruxaria explica o que para nós é meramente o acaso, o que me leva a crer que se trata até de um pensamento mais complexo.
Mas sem o intuito de construir um etnocentrismo às avessas, penso que a comparação é injusta. Nossos oráculos em sua grande maioria se formaram num conhecimento elevado por serem pessoas de vida favorecida, são observados pela sociedade como divindades e usam seu posto como uma verdadeira maneira de dominação.  A explicação para a causa de minha paralisia facial foi me dada após muito esforço de minha parte, afinal o paciente é apenas um objeto do exercício  do saber do médico. Também a autonomia para a escolha do tratamento não é minha, pois não tenho acesso aos conhecimentos básicos sobre o que acontece com o meu corpo e como prevenir doenças. Constato isso e penso como seus altos lucros com consultórios cheios seriam abatidos se a população tivesse este acesso.
Por isso a comparação é perversa para os Azande: o elemento do patrimonialismo não está entre eles. Lá, o oráculo não é um ser humano. No Brasil, a saúde é considerada um bem público por aqueles que lutam por ela, mas ela é apropriada como privada por uma elite médica que detém o conhecimento sobre ela.
Hoje retornei ao oráculo e ele me diagnosticou como recuperado. O que me curou? Estou mesmo curado, se ainda não faço todos os movimentos? Dependo exclusivamente de confiar na palavra dele. Para ter autonomia diante de tudo isto é preciso um novo modelo, que também está aí desde a Constituição de 88: SUS. No entanto, falta verba para que ele sobreviva. Por que será?

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