sábado, 9 de janeiro de 2016

Dona Luzia

Dona Luzia foi uma pessoa marcante, jamais passou desapercebida. Esta talvez fosse sua maior característica: uma personalidade muito forte. Uma pessoa comum, todavia. Este texto não é, portanto, a história de uma heroína da sociedade, ou de alguém que terá sua memória contada por novas gerações, então tem este objetivo, passar a todos sua história e lembrá-los de sua existência, motivação esta que ficará mais clara à frente.
Mais uma imigrante nordestina no Rio de Janeiro, minha avó, que trabalhava nos Correios, veio com seu marido Carlos e os filhos também Carlos e Marçal ainda pequenos, em busca de melhoras na vida. Aqui teve outra filha, Rita de Cássia, minha mãe, após abortos sucessivos, alguns espontâneos, outros motivados pelas dificuldades materiais que encontrava aqui, proporcionando uma infância de pobreza aos seus filhos.
Na adolescência de minha mãe, se separou do marido, que mais tarde voltaria para Alagoas. Casou-se com Cícero, um sergipano que eu conheci como avô, e que só soube que não era anos após sua morte, que aconteceu quando eu tinha seis anos. Curiosidades desta minha vó Luzia, cuja separação com o primeiro marido era um conflito para ela própria. Convivia com a situação de ser "desquitada" de uma maneira bastante contraditória: ainda que visse justiça no seu ato, bem ou mal concordava com as regras sociais de que "largar o marido" era uma atitude errada. Meu vô Ciço foi uma das pessoas que eu tive mais carinho na infância. Estranhava-me o fato de minha mãe não chamá-lo de pai, e o fato dele ser "Correia de Melo", enquanto eu era "Lemos Gama da Silva". O fato que para os outros fosse mais óbvio, um avô negro de neto branco não despertava a minha atenção. São malícias e valores que se adquire socialmente, coisas que uma criança não conhece.
Para mim, minha vó foi a Igreja Católica aos domingos, a bicicleta que eu tinha que aprender a andar, enquanto Daniel, Hugo e Mário me esperavam para jogar bola. Minha avó foi a disciplina. Comentava com minha irmã que não temos memórias de momentos de ternura com ela. Amava-nos muito, e por isso nos dava disciplina. "Criava" crianças assim, aprendeu em Alagoas e trouxe para cá. Esta maneira talvez fosse estranha aos meus amigos cariocas, de famílias mais cosmopolitas, amantes da malandragem. Na minha casa a boa malandragem nossa sempre foi vista com hostilidade, de maneira que brinco que aprendi a ser carioca na faculdade. 
Também seus valores, muito conservadores, não me deixam dizer que muito do que penso hoje se deve a ela. Não seria muito honesto afirmá-lo, talvez minha trajetória pessoal seja de negar os valores que ela me passava. Nunca consegui ser o machão garanhão que ela esperava que eu fosse, o chefe de família decidido, ainda que estas exigências tenham moldado muito o meu comportamento. Os resquícios coloniais de nossa sociedade que tanto atrapalham a unidade da classe trabalhadora brasileira também ocupavam sua maneira de pensar. Ao seu racismo eu costumava responder com as letras de Gabriel, O Pensador, rapper que eu admirava na infância. Estas revelações talvez não coubessem neste momento, mas é que não as tenho como um julgamento moral, entendo que os trabalhadores são levados a pensar assim, de uma maneira geral, e lidar com isso também formou minha maneira de pensar, aliado às experiências de luta política dos trabalhadores da estatal Furnas Centrais Elétricas contra o programa neoliberal de FHC de privatizações das empresas nacionais, que emu pai compartilhava conosco.
Mas o legado principal que minha vó deixou foi sua valentia. Não conheci pessoa mais lutadora.A minha infância poderia ter sido mais sofrida não fossem seus valores cristãos de sacrifício, que meus pais também compartilhavam, os últimos anos foram particularmente melhores financeiramente para a família proletária da Praça Seca, que até então dependia da ajuda de sua pequena aposentadoria. Às doenças que tinha, ela sempre saía vencedora. Problemas graves de hipertensão, cardíacos vários... várias vezes se internou e voltou. Aos 67 anos teve o mais violento: um AVC que a deixou com um lado paralisado do corpo, com a fala prejudicada e com a vida comprometida. Passou um bom tempo no hospital, fez cirurgia cerebral e viveu mais 13 anos.
Eu tinha 14 a essa altura. Minha maneira de reagir foi contraindo uma gastrite terrível que me acompanhou até os primeiros anos de faculdade. Já minha vó permaneceu com sua luta. Nos primeiros anos os resultados animavam, chegou a dar os primeiros passinhos. E ela apareceu em sonhos meus andando muitas vezes, mas foi acometida de novo AVC, e então as esperanças se esvaíram. Nos últimos anos era uma vida quase vegetativa, com alguns momentos que ela me dava aquele velho olhar vivo de sempre, como quem gostaria de me dizer alguma coisa. É impossível não mencionar a dedicação de minha mãe, que aos 37 anos dedicou sua vida integralmente aos cuidados dela, ato de enorme raridade na sociedade que vivemos.
Hoje, diante de sua morte, o sentimento é muito estranho. Para alguns é um "descanso". Eu sou movido por muitas dúvidas, já que não tenho certeza do descanso, e fico perguntando se esse olhar vivo ainda não fosse mais vida que o nada que se segue. Tomara que eu esteja errado. Para a família por outro lado é um descanso, sem dúvida, principalmente para minha mãe. Ao mesmo tempo que é terrível pensar assim.
Sua morte é uma tragédia anunciada há 13 anos, de maneira que para nós não é nada abrupta; mais parece um fim longo e inevitável. Para a sociedade, ela morreu aos 67, e não aos 80. As muitas amigas sumiram, com a exceção da fiel Dona Arlete, que a visitou durante todos estes anos, e só parou diante do pedido de minha mãe: vê-la neste estado não podia fazê-la bem. Os outros se lembravam apenas no encontro com a minha mãe. E eu escrevo justamente por isso. Para que não se esqueçam. E para os muitos que conviveram comigo sequer sem saber que a conheçam, porque assim conhecem um bocado de mim também.
Peço desculpas pela longa leitura, mas sinto que devia isso a ela e agradeço por me permitirem transmitir esta mensagem. Afinal é comum na família a incerteza se o que foi feito foi suficiente.

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