segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Reflexões sobre "A Vida de Antonio Gramsci"1: A luta por hegemonia e o Brasil contemporâneo

Este pretende ser um de uma série de textos que visam divulgar a biografia "A Vida de Antonio Gramsci" de Giuseppe Fiori, assim como o pensamento do comunista italiano e suas contribuições para o mundo contemporâneo. A biografia ajuda a entender as questões particulares da vida do autor que nos faz entender melhor como chegou às questões que postulou, como a sua naturalidade sarda e a sua militância no PCd'I antes da prisão.
Neste texto chamo a atenção para o tema da hegemonia em Gramsci. Há uma grande contribuição teórica ao leninismo neste mérito, ainda que o próprio autor acreditasse estar defendendo a posição leninista no contexto interno do Partido Comunista da Itália, como o livro de Fiori bem demonstra. Como se conhece, Gramsci faz uma tipificação da dominação: por vezes ela se dá através do uso ostensivo da violência, o que ele chama de ditadura, e por vezes na busca pelo consenso, pelo convencimento e consentimento, ainda que na mesma sociedade se possa identificar ambas as coisas.
A contribuição ao leninismo mencionada se dá em decorrência deste entendimento: percebendo que a dominação burguesa se estabelece a partir do isolamento da classe trabalhadora, através da repressão política e também dos mecanismos de divulgação de seus valores de classe, e, então, também a luta pelo socialismo deve ser pensada de maneira mais ampla que se faz convencionalmente, até os dias atuais, eu diria:

"No período posterior a 1870, com a expansão colonial europeia, todos estes elementos se modificam, as relações de organização internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e robustas; e a fórmula da 'revolução permanente', própria de 1848, é elaborada e superada na ciência política com a fórmula de 'hegemonia civil'. Ocorre na arte política o que ocorre na arte militar: a guerra de movimento torna-se cada vez mais guerra de posição; e pode-se dizer que um Estado vence uma guerra quando a prepara de modo minucioso e técnico no tempo da paz. A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações estatais, seja como conjunto de associações na vida civil, constitui para a arte política algo similar às 'trincheiras' e às fortificações permanentes da frente de combate na guerra de posição: faz com que seja apenas "parcial" o elemento do movimento que antes constituía 'toda' a guerra, etc."(GRAMSCI, 2010,p.24)

Este fragmento é de grande contribuição para se pensar a luta política nas sociedades modernas, mais complexas, com instituições fortes e que cumprem grande papel na garantia da hegemonia burguesa. Portanto, longe da falsa acusação de reformismo, a ideia de que se precisa ocupar postos na sociedade capitalista para fortalecer a luta pelo socialismo (guerra de posição), nos atenta justamente para adaptar a luta pelo socialismo às suas próprias necessidades. Assim, este empreendimento da guerra de posição se soma à guerra de movimento, aquela tão bem definida por Lênin em "O Estado e a Revolução", na qual implementar o socialismo significa assaltar o Estado capitalista e assim destruí-lo para dar lugar ao Estado socialista, o Estado dirigido pela classe operária. Sem dúvida, a leitura de Gramsci feita por muitos ignora este aspecto, e assim se propagandeia uma concentração de todas as energias nas ações institucionais e nos embates eleitorais, o que não corresponde à totalidade do pensamento de Gramsci.
Fiori mostra que este pensamento é fruto de sua reflexão sobre a luta política na Itália, e particularmente de suas divergências com outro membro do Comitê Central, Amadeo Bordiga, que pensava a luta exclusivamente na inserção do partido comunista no trabalho sindical, recusando a participação em eleições e qualquer tipo de alianças com os "reformistas" do partido socialista. Gramsci veria no discurso de Bordiga um esvaziamento de reflexão sobre os caminhos para se chegar ao socialismo, como se a própria palavra revolucionária substituísse a tática revolucionária. Para Gramsci, era preciso compreender o estado de isolamento político na complexa sociedade italiana e revertê-lo, isolando a burguesia e construindo a hegemonia operária.
Pensava-o de maneira bastante criativa, a partir de um estudo profundo das relações sociais no país. Entendia que a burguesia atuava na repressão ao movimento operário e contava com o apoio de um "bloco agrário" composto por uma burguesia rural, um setor médio de intelectuais e uma extensa massa de camponeses. Estes intelectuais eram identificados pelo autor como o elo entre os burgueses rurais e os camponeses, a partir de uma análise que parte das relações entre as classes para depois entender os elementos subjetivos das frações que compõem estas classes, numa análise materialista bastante complexa:

"A sociedade meridional, escreve Gramsci, é um bloco agrário constituído de três estratos sociais: a grande massa camponesa amorfa e desagregada, os intelectuais de média e pequena burguesia rural, os grandes proprietários de terra e os grandes intelectuais. O segundo estrato (dos pequenos e médios intelectuais) provém de uma camada com características bem definidas: o pequeno e médio proprietário de terras que não é camponês, que não trabalha a terra, que se envergonharia de trabalhar como agricultor, mas que da pouca terra que possui, dada em aluguel ou em parceria, quer arrancar renda que lhe possibilite viver convenientemente, mandar o filho para a universidade ou para o seminário, formar o dote das filhas que devem casar com um oficial ou com um funcionário civil do Estado.(...) Este tipo de intelectual, democrata na face mostrada ao camponês e reacionário na face que se volta para o grande proprietário e para o governo, politiqueiro, corrupto, desleal, é o elo que liga o camponês meridional ao grande proprietário de terra. (…)  a ruptura do bloco agrário só poderá ser obtida com a formação de um estrato de intelectuais de esquerda, novos intelectuais médios que não unam mais o camponês ao proprietário de terras. "(FIORI, 1979, p.260-261) 

Posta esta questão, é interessante observar que na esquerda brasileira encontramos os dois problemas: alguns, como a repetir Bordiga, seguem enunciando sua verborragia revolucionária e, para além de manter o isolamento da classe trabalhadora, trabalham em se isolar dela própria, muito mais entregue à visão política difundida pela mídia. Outros concentram suas energias no enfrentamento eleitoral, e igualmente se isolam das lutas empreendidas pelos trabalhadores, muitas delas negando a ação partidária, por a entenderem justamente em sua dimensão eleitoral apenas, e não como um instrumento revolucionário, e muitas vezes sequer concebem a revolução socialista como uma meta, o que também se coloca como um limite destas lutas.
Debati este tema, por certa vez, com o camarada André Tokarski, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, quando estávamos então em uma reunião do movimento de pós-graduandos. Eu, neste momento talvez mais bordiguista, chamava a atenção para a necessidade de aproximação com estas lutas, identificando então algum desajuste na linha do partido. Ele, mais gramsciniano em sua compreensão da luta política, chamava a atenção ainda para a fragilidade da classe trabalhadora para desempenhar a luta mais elevada pelo socialismo, e argumentava então que a luta pela democracia deveria ser central na linha do partido, já que a dominação burguesa se colocava em ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e até mesmo contra o voto da população, buscando o impeachment de Dilma Roussef.
Coisa parecida argumentava Gramsci contra Bordiga, dizendo que no avanço do fascismo na Itália, em pleno governo de Mussolini, o proletariado não estava pronto para a tomada do poder, mas sim para a defesa da democracia burguesa, do direito ao voto, e esta linha deveria ser empenhada pelo partido, como uma forma de preparação do terreno para a luta pelo socialismo. Este exemplo mostra como o exercício do pensamento dialético é fundamental para o marxismo: eu, pelo meu lado, sempre estive certo de que os trabalhadores brasileiros não estão prontos para a tomada do poder, mas dizê-lo é importante. Da parte que cabe à linha do partido, penso que ainda precisa ser mais ousada na formulação do que entende por democracia, ou seja, não apenas o voto popular em Dilma Roussef, mas o fim da repressão policial e o extermínio de jovens pobres, e de jovens pobres negros especialmente, a distribuição da riqueza no país e a taxação das grandes fortunas, o posicionamento mais enfático em defesa dos trabalhadores rurais e dos povos indígenas na violenta luta pela terra no Brasil, da democratização dos meios de comunicação e de produção de conhecimento, e todos os outros temas que tangem à superação do capitalismo colonial brasileiro. E mais que isso: é preciso, como Gramsci, entender que aspectos garantem o isolamento da classe trabalhadora no Brasil para assim elaborar uma atuação mais eficaz junto aos segmentos que contribuirão para superá-lo. A luta pela democracia sem dúvida é um bom sinal na linha política, mas é fundamental avançar no plano de ação.

FIORI, Giuseppe. A Vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979
GRAMSCI, Antonio. “Maquiavel: Notas sobre o Estado e a política” In: Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000


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