quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Reflexões sobre "A Vida de Antonio Gramsci" II: O corporativismo do proletariado

“A este ponto, qual era afinal a direção da pesquisa gramsciana? Atento à experiência dos soviets (em russo soviet quer"" dizer conselho), ao desenvolvimento dos Conselhos de fábrica e de fazendas nos quais se organizaram os operários e os camponeses, o jovem se perguntava: 'Existe na Itália, como instituição da classe operária, algo que possa ser comparado ao Soviet, que comparticipe da sua natureza?...Existe um germe, uma veleidade, um esboço de governo dos Sovietes na Itália, em Turim?” A resposta era: 'Sim, existe na Itália, em Turim, um germe do governo operário, um germe de Soviet: é a comissão interna'. Mas como este embrião de democracia operária poderia desenvolver-se até se tornar o órgão do poder proletário? A ideia central de Gramsci era que todos os operários todos os empregados, todos os técnicos e mais tarde todos os camponeses e logo todos os elementos ativos da sociedade deveriam tornar-se , fossem ou não inscritos no sindicato e independente do partido a que pertencessem, e mesmo que não militassem em um partido, mas apenas pelo fato de serem operários, camponeses, etc., de simples executores a dirigentes do processo produtivo; de peças de um mecanismo regulado pelos capitalistas a sujeitos; em essência, que os órgãos democraticamente eleitos pelos trabalhadores (os Conselhos de fábrica, de fazenda, de bairro) fossem investidos debaixo do poder tradicionalmente exercido na fábrica e no campo pela classe proprietária e nas administrações públicas pelo delegado do capitalista. (FIORI, 1979, p.150)


Este fragmento do livro "A Vida de Antonio Gramsci" de Giuseppe Fiori é bastante sugestivo a respeito do pensamento do autor. Refere-se ao período em que Gramsci, descobrindo o marxismo e a Revolução Russa, a partir das primeiras obras de Lenin publicadas na Itália, começa a sua consolidação enquanto dirigente político do movimento operário em Turim, cidade na qual cursou faculdade de Letras e foi editor de alguns jornais. 
Vemos, portanto, um militante que pensa a luta pelo socialismo e a criação do governo operário a partir da base social. O governo operário, para ele, se faria na passagem de objeto a sujeito da produção por parte da classe trabalhadora. Este processo é essencialmente político, já que conta com a organização do povo para fazer surgir um poder contra-hegemônico: em um primeiro momento os Conselhos de fábrica conviveriam com o poder capitalista, fomentando a luta revolucionária, para depois então substituir o próprio Estado. 
No entanto, há um aspecto econômico fundamental nesta abordagem, já que o fim do processo político significa o empoderamento da classe trabalhadora sobre os meios de produção, ou seja, a abolição da classe proprietária passa pelo estágio em que os trabalhadores estejam preparados para dirigir a produção. Neste sentido, a organização dos trabalhadores deve ter por fim a própria extinção da exploração do trabalho e desmontar o arranjo social capitalista de produção de mercadorias e acumulação de capital.  
Esta é uma referência importante para se pensar as lutas contemporâneas a respeito do conflito capital x trabalho. É notório como o sindicalismo brasileiro historicamente deixou de cumprir este papel político revolucionário e vem se convertendo em um aparelho de regulação das relações capitalistas. Se na primeira metade do século XX a luta dos trabalhadores no Brasil era uma declarada contestação à ordem capitalista, o que vemos no sindicalismo surgido nos anos 1980 é o deslocamento do conflito com o Estado e a ordem política para o âmbito local, trabalhadores contra seus patrões. Isso até então estaria de acordo com a perspectiva gramsciniana, a questão é que o questionamento à ordem se converte na luta por aumento de salários e direitos ao consumo de massa. 
Vale fazer uma ressalva que, apesar disto, esta estrutura de mobilização foi fundamental para o declínio do regime militar e a resistência às políticas neoliberais. Todavia, uma vez consolidada, esta estrutura se reduziu às greves efetuadas nos períodos de database, a fim de conseguir aumentos pouco acima da inflação. Não questionando a ordem capitalista, esta estrutura sindical acaba sendo um instrumento de seu fortalecimento, regulando a relação de exploração do trabalho de maneira que se permita a própria reprodução da força de trabalho (garante assim que se perpetue o acesso ao consumo). Interessante que para Gramsci, ainda no início do século XX, a estrutura sindical estaria comprometida com este papel:

E depois não se tratava mais , como no caso dos sindicatos, de lutar por salários melhores, por uma regulamentação democrática da vida de fábrica, horários, higiene, repouso, etc. O Conselho de fábrica, formado por comissários eleitos em cada seção, não devia tratar com o capitalista mas simplesmente substitui-lo por regular de cima a baixo a vida da fábrica (FIORI, 1979, p.150).

Evidentemente, estas práticas são argumentadas através da ideia de que se poderá produzir consciência de classe, partindo do aspecto corporativo ao geral, no entanto, na prática isto não acontece. Desenvolve-se o corporativismo como filosofia de trabalho e a disputa política plena só é feita pelas direções sindicais e partidárias.
A classe trabalhadora, no entanto, não está à espera de suas representações políticas. Vemos se proliferarem diversas lutas no país, de conteúdo anti-racista, por moradia, contra opressões, etc. Dessa maneira, se sugere que o lugar da política desempenhada pelos trabalhadores esteja se deslocando da fábrica, à medida que estes sentem os impactos da exploração do trabalho e dos mecanismos estatais que a garantem em outras áreas da vida social, e para isso é preciso, como Gramsci, desenvolver uma teoria atual que compreenda esta dinâmica.



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