quinta-feira, 16 de março de 2017

O Respiro

A palavra q'ara é coisa corriqueira no vocabulário aymara. Para estes indígenas da Cordilheira dos Andes, q'ara é um termo recorrente para se referir ao "homem branco", mas é bem mais que isso. Ser q'ara significa viver fora da comunidade, viver só, viver como indivíduo. É comum dizer que para os aymaras, viver fora da comunidade é como morrer, para os q'aras. Se a você isto não parece uma reflexão importante, argumento então porque a mim tem sido tão cotidiana. 
Há uma grande sabedoria em perceber a vida ocidental desta maneira, fora da comunidade. Estou convicto de que esta nossa característica é razão para a maior parte de nossos traumas, apesar de não ser um indivíduo qualificado para afirmá-lo. Todavia, ainda existem resquícios de vida em comunidade, nem tudo é hedonismo e culto ao consumo.
Ontem foi dia de ato contra a reforma da previdência. Quanta gente! Quantos corações embalados pelo mesmo propósito! E lá estava a nossa bateria, pegando jeito. Lá estava o nosso bandeirão que se vê de longe. "O bandeirão é a nossa referência", diria mais tarde Igor, se referindo à nossa retirada, enquanto a polícia explodia bombas atrás de nós, mas essa frase ficou para mim com uma maior profundidade. Aquelas letras, ainda mais naquele tamanho, diziam muito sobre a dedicação de uma vida. E logo encontrei Roberto, Isa, Edson, Rodrigo, Rômulo, Bia, a outra Isa, Mariana e tantos outros que há tanto tempo compartilham o mesmo sentimento. E de repente: "oi Allysson, tudo bem?", e um sorriso que não queria acabar. Um pouco depois chega a mim uma bandeira menor, do Partido Comunista, para que eu a carregasse por toda a passeata. Definitivamente, um respiro.
Durante a passeata, cada vez mais gente parecia se juntar em torno de nós, e em plena Presidente Vargas, o eco de "Diretas Já!" me fez ter um dejá vù de algo que individualmente não vivi. Naquele momento, não fui q'ara.
Mas como diria o poeta, "tudo passa, tudo passará!", e ao final do ato bandeiras devolvidas, bateria guardada, animosidades afloradas, aquele sorriso voltou-se para o iphone e o jogo do Flamengo foi visto em casa. Por que o Diego fez aquela falta? Esta, que foi a pergunta final do dia, teve que ser feita pelo Whatsapp. 
Quando é o próximo ato? Quando a vida poderá se converter em ato?

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