sábado, 10 de novembro de 2012

Relato n° 284

Madrugada no Centro da Cidade. A salvação é única. A van 284 que sai da Central do Brasil é a única saída para os moradores do remoto bairro da Praça Seca, Zona Oeste do Rio. A van mantém o número antigo da linha de ônibus, agora 371, para uma breve alegria de um certo compadre meu, muito apegado às tradições.
Desta vez fui alcançá-la já em seu trajeto, na Leopoldina, quase no retorno para São Cristóvão. Também mais cedo que o de costume, um sinal dos tempos, talvez. Só havia um lugar para sentar no fundo da van. Hesitante, afinal a dois lugares do meu um jovem trabalhador, por volta dos seus 18 anos, colocava para fora os excessos da juventude. Ele e o fiel amigo trabalham num hotel no Leblon e fizeram uma parada certamente marcante na Lapa. Do outro lado um sujeito um tanto mais velho, lá pelo seus 30, mais bem arrumado, porém sem esconder a humildade estampada em seu semblante, fazia piadas de uma senhora que era quase a única voz da van. E uma voz bem esganiçada, de modo que até a piada ficou engraçada.
-Deixa eu dormir! - ele dizia - Pode descer, eu pago a sua passagem!
E assim foi a simpática viagem, de modo que até a senhora entrou na brincadeira. Desceu na Mangueira e conjecturou:
- Esse num é do morro não, hein! - dizia se referindo ao piadista, que se despedia dela calorosamente.
- Ih, tá de bobeira. Se eu descer aqui ainda pego um camarote no samba - gabou-se - vamo playboy? - não, não era para mim, mas para o fiel escudeiro do vomitão, que até então só fazia reclamar da bebedeira do amigo. - Aqui antigamente tinha o baile que fervia, agora..
- E agora, num tem mais baile? - perguntou o pretenso antropólogo, meio que sabendo por onde viria a resposta.
- Ter, tem! Mas num é mais como antigamente né. Pacificado! Antigamente era o fervo...
Pois eis que desce a senhora e sobem dois amigos. O assunto deles calou o resto da van. Só quem falava era o de reflexo no cabelo.
- Vê se pode! Nunca fez mal a ninguém, quer bater em mim? Matar ele a gente não vai, mas ontem eu enfiei a faca em um, ia na barriga, mas ele botou o braço. Agora esse eu vo com a barra de ferro! Se vier o pai dele eu vo embolar no pai dele! Se vier a mãe dele eu vo embolar na mãe dele! Se vier a Vanessa, eu vo embolar na Vanessa!
E por aí foi o assunto por uns 5 incansáveis minutos. O fiel escudeiro agora ria, e o piadista pegou o celular para falar com a namorada. O pretenso antropólogo seguia alimentando o exercício do olhar sociológico, enquanto o "loiro" falava.
Desceram no Jacaré. Onde, em geral, eles descem. Sua observação final foi:
- Olha como isso aqui está mudado, tem polícia até no bequinho agora. Se liga ai mané!
O piadista e o escudeiro concordaram que bandido ele não era. "Não estaria se explanando assim na pista". A van seguia. O cheiro da cachaça incomodou , eu reclamei e o piadista concordou, levantando-se para abrir a janela. Atitude louvável. Voltou às piadas.
Já na subida do viaduto de Cascadura, a mulher perguntou pelo Sambola. O motorista desconfiou, mas o piadista defendeu.
- É verdade, ela já tinha pedido e eu também esqueci de avisar!
- É, no caso dela deu pra ver que é verdade. Mas tem umas que aproveitam pra armar o 7! - respondeu o motorista, que não cobrou a passagem.
E aí então em Cascadura desceram o escudeiro, o vomitão e o piadista. Eu segui mais um tanto até a Praça Seca. Em geral é assim, os amigos descem antes e o assunto é cortado abruptamente.
Se isto fosse um conto de fadas, eu teria uma moral para essa história : "se nem a van 284 é para principiantes, que dirá o Brasil, meu caro!". Mas esse não será o meu último relato de campo, e eu também não deixo de ser um personagem.

Allysson Lemos, dessa vez!

Um comentário:

  1. Quantas informações, quantos textos..
    Estava por aqui bisbilhotando seu cantinho rsr
    Acabei me instalando por aqui para poder acompanhar melhor.

    Tenha um ótimo dia e um fim de semana maravilhoso..
    Sheila

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