Madrugada no Centro da Cidade. A salvação é única. A van 284 que sai da Central do Brasil é a única saída para os moradores do remoto bairro da Praça Seca, Zona Oeste do Rio. A van mantém o número antigo da linha de ônibus, agora 371, para uma breve alegria de um certo compadre meu, muito apegado às tradições.
Desta vez fui alcançá-la já em seu trajeto, na Leopoldina, quase no retorno para São Cristóvão. Também mais cedo que o de costume, um sinal dos tempos, talvez. Só havia um lugar para sentar no fundo da van. Hesitante, afinal a dois lugares do meu um jovem trabalhador, por volta dos seus 18 anos, colocava para fora os excessos da juventude. Ele e o fiel amigo trabalham num hotel no Leblon e fizeram uma parada certamente marcante na Lapa. Do outro lado um sujeito um tanto mais velho, lá pelo seus 30, mais bem arrumado, porém sem esconder a humildade estampada em seu semblante, fazia piadas de uma senhora que era quase a única voz da van. E uma voz bem esganiçada, de modo que até a piada ficou engraçada.
-Deixa eu dormir! - ele dizia - Pode descer, eu pago a sua passagem!
E assim foi a simpática viagem, de modo que até a senhora entrou na brincadeira. Desceu na Mangueira e conjecturou:
- Esse num é do morro não, hein! - dizia se referindo ao piadista, que se despedia dela calorosamente.
- Ih, tá de bobeira. Se eu descer aqui ainda pego um camarote no samba - gabou-se - vamo playboy? - não, não era para mim, mas para o fiel escudeiro do vomitão, que até então só fazia reclamar da bebedeira do amigo. - Aqui antigamente tinha o baile que fervia, agora..
- E agora, num tem mais baile? - perguntou o pretenso antropólogo, meio que sabendo por onde viria a resposta.
- Ter, tem! Mas num é mais como antigamente né. Pacificado! Antigamente era o fervo...
Pois eis que desce a senhora e sobem dois amigos. O assunto deles calou o resto da van. Só quem falava era o de reflexo no cabelo.
- Vê se pode! Nunca fez mal a ninguém, quer bater em mim? Matar ele a gente não vai, mas ontem eu enfiei a faca em um, ia na barriga, mas ele botou o braço. Agora esse eu vo com a barra de ferro! Se vier o pai dele eu vo embolar no pai dele! Se vier a mãe dele eu vo embolar na mãe dele! Se vier a Vanessa, eu vo embolar na Vanessa!
E por aí foi o assunto por uns 5 incansáveis minutos. O fiel escudeiro agora ria, e o piadista pegou o celular para falar com a namorada. O pretenso antropólogo seguia alimentando o exercício do olhar sociológico, enquanto o "loiro" falava.
Desceram no Jacaré. Onde, em geral, eles descem. Sua observação final foi:
- Olha como isso aqui está mudado, tem polícia até no bequinho agora. Se liga ai mané!
O piadista e o escudeiro concordaram que bandido ele não era. "Não estaria se explanando assim na pista". A van seguia. O cheiro da cachaça incomodou , eu reclamei e o piadista concordou, levantando-se para abrir a janela. Atitude louvável. Voltou às piadas.
Já na subida do viaduto de Cascadura, a mulher perguntou pelo Sambola. O motorista desconfiou, mas o piadista defendeu.
- É verdade, ela já tinha pedido e eu também esqueci de avisar!
- É, no caso dela deu pra ver que é verdade. Mas tem umas que aproveitam pra armar o 7! - respondeu o motorista, que não cobrou a passagem.
E aí então em Cascadura desceram o escudeiro, o vomitão e o piadista. Eu segui mais um tanto até a Praça Seca. Em geral é assim, os amigos descem antes e o assunto é cortado abruptamente.
Se isto fosse um conto de fadas, eu teria uma moral para essa história : "se nem a van 284 é para principiantes, que dirá o Brasil, meu caro!". Mas esse não será o meu último relato de campo, e eu também não deixo de ser um personagem.
Allysson Lemos, dessa vez!
Desta vez fui alcançá-la já em seu trajeto, na Leopoldina, quase no retorno para São Cristóvão. Também mais cedo que o de costume, um sinal dos tempos, talvez. Só havia um lugar para sentar no fundo da van. Hesitante, afinal a dois lugares do meu um jovem trabalhador, por volta dos seus 18 anos, colocava para fora os excessos da juventude. Ele e o fiel amigo trabalham num hotel no Leblon e fizeram uma parada certamente marcante na Lapa. Do outro lado um sujeito um tanto mais velho, lá pelo seus 30, mais bem arrumado, porém sem esconder a humildade estampada em seu semblante, fazia piadas de uma senhora que era quase a única voz da van. E uma voz bem esganiçada, de modo que até a piada ficou engraçada.
-Deixa eu dormir! - ele dizia - Pode descer, eu pago a sua passagem!
E assim foi a simpática viagem, de modo que até a senhora entrou na brincadeira. Desceu na Mangueira e conjecturou:
- Esse num é do morro não, hein! - dizia se referindo ao piadista, que se despedia dela calorosamente.
- Ih, tá de bobeira. Se eu descer aqui ainda pego um camarote no samba - gabou-se - vamo playboy? - não, não era para mim, mas para o fiel escudeiro do vomitão, que até então só fazia reclamar da bebedeira do amigo. - Aqui antigamente tinha o baile que fervia, agora..
- E agora, num tem mais baile? - perguntou o pretenso antropólogo, meio que sabendo por onde viria a resposta.
- Ter, tem! Mas num é mais como antigamente né. Pacificado! Antigamente era o fervo...
Pois eis que desce a senhora e sobem dois amigos. O assunto deles calou o resto da van. Só quem falava era o de reflexo no cabelo.
- Vê se pode! Nunca fez mal a ninguém, quer bater em mim? Matar ele a gente não vai, mas ontem eu enfiei a faca em um, ia na barriga, mas ele botou o braço. Agora esse eu vo com a barra de ferro! Se vier o pai dele eu vo embolar no pai dele! Se vier a mãe dele eu vo embolar na mãe dele! Se vier a Vanessa, eu vo embolar na Vanessa!
E por aí foi o assunto por uns 5 incansáveis minutos. O fiel escudeiro agora ria, e o piadista pegou o celular para falar com a namorada. O pretenso antropólogo seguia alimentando o exercício do olhar sociológico, enquanto o "loiro" falava.
Desceram no Jacaré. Onde, em geral, eles descem. Sua observação final foi:
- Olha como isso aqui está mudado, tem polícia até no bequinho agora. Se liga ai mané!
O piadista e o escudeiro concordaram que bandido ele não era. "Não estaria se explanando assim na pista". A van seguia. O cheiro da cachaça incomodou , eu reclamei e o piadista concordou, levantando-se para abrir a janela. Atitude louvável. Voltou às piadas.
Já na subida do viaduto de Cascadura, a mulher perguntou pelo Sambola. O motorista desconfiou, mas o piadista defendeu.
- É verdade, ela já tinha pedido e eu também esqueci de avisar!
- É, no caso dela deu pra ver que é verdade. Mas tem umas que aproveitam pra armar o 7! - respondeu o motorista, que não cobrou a passagem.
E aí então em Cascadura desceram o escudeiro, o vomitão e o piadista. Eu segui mais um tanto até a Praça Seca. Em geral é assim, os amigos descem antes e o assunto é cortado abruptamente.
Se isto fosse um conto de fadas, eu teria uma moral para essa história : "se nem a van 284 é para principiantes, que dirá o Brasil, meu caro!". Mas esse não será o meu último relato de campo, e eu também não deixo de ser um personagem.
Allysson Lemos, dessa vez!
Quantas informações, quantos textos..
ResponderExcluirEstava por aqui bisbilhotando seu cantinho rsr
Acabei me instalando por aqui para poder acompanhar melhor.
Tenha um ótimo dia e um fim de semana maravilhoso..
Sheila